Reinaldo Azevedo

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Opinião

Se o silêncio de Aras garantiu a democracia, quem a ameaçava caso falasse?

Vamos lá.

Eu poderia aqui apontar as múltiplas vezes em que vi omissão de Augusto Aras, o procurador-geral da República que se despede, na necessária contenção de Jair Bolsonaro. O homem teve um papel relevante no desaparelhamento do Ministério Público Federal, que havia sido colonizado pelo lava-jatismo. Mas isso, por si, não basta para abonar o seu desempenho à frente do cargo. Há reportagens às pencas a respeito. Meu ponto aqui é outro e tem a ver com os quatro anos em que país viveu em perigo, sob a égide de um golpista. Por que digo isso?

Nesta segunda, houve uma solenidade de outorga de comendas no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) a personalidades que tenham contribuído com o órgão. Um dos agraciados foi Dias Toffoli, ministro do Supremo, a quem coube falar em nome dos homenageados. Fez um discurso, vamos dizer, intrigante. Afirmou, por exemplo:
"Por que que eu digo que o país e a nação brasileira tiveram a graça de ter Antonio Augusto Brandão de Aras? Não fossem a responsabilidade, a paciência, a discrição e a força do silêncio de sua Excelência, Augusto Aras, talvez nós não estivéssemos aqui; nós não teríamos, talvez, democracia"

Em ainda:
"Faço essas referências porque são coisas que serão contadas mais à frente na história, que poucas pessoas sabem. Nós estivemos muito próximos da ruptura, e, na ruptura, não tem Ministério Público, não tem direitos, não tem a Graça. A graça é ser amigo do Rei. Ninguém é tratado como igual" .

O elogiado se mostrou grato:
"As palavras do ministro Toffoli hoje, um dia, adiante, serão detalhadas para que todo o povo brasileiro saiba que a democracia deste país, preservada, passou por essa instituição mantenedora, como é de seu dever constitucional, da ordem jurídica que sustenta o regime democrático, o Estado de Direito, que é o seu meio de trabalho, e a economia aberta, de mercado, implícita nos princípios, nos direitos e garantias fundamentais da ordem econômica".

Disse ainda ter aprendido, lendo a biografia de grandes homens — como Churchill —, a não ter medo de desafiar a imprensa desde que tenha a convicção de que faz o melhor pela sociedade. Vamos ver.

HISTÓRIA NAS SOMBRAS
Obviamente, o ministro Toffoli exagera quando evoca a Graça divina. Mas o que me incomoda, de verdade, é outra coisa -- o arroubo fica, vá lá, na conta da generosidade e das larguezas retóricas que sempre são visitadas em momentos solenes.

O que realmente chama atenção na fala do ministro do Supremo, e depois é reiterado pelo próprio elogiado, é a afirmação de que há eventos secretos que garantiram a sobrevivência do estado de direito. Sendo assim, temos de concluir que também as ameaças ainda são desconhecidas. De quem ou do quê ambos estão a falar? Referem-se a Bolsonaro? Então há dados que estão nas sombras, nos subterrâneos da República?

Alguém poderia dizer: "Ora, Reinaldo, isso é da natureza do jogo; os historiadores estão aí para desvendar os enigmas e mistérios..." Sim. Sei disso. Mas esperem um pouco. Inquéritos estão em curso e investigam os atos golpistas. Dados que vazaram da delação de Mauro Cid apontam, por exemplo, que Bolsonaro reuniu os comandantes das Forças Armadas para tentar virar a mesa.

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Então cabe a pergunta: de que maneira, com o seu silêncio, e não com as suas atitudes, o então titular da PGR contribuiu para salvar a pátria? Como explicar que o órgão que é o fiscal da lei e o titular das ações penais cumpre a nobre missão de salvar a país justamente ao não exercer as suas prerrogativas?

Aras diz que um dia saberemos de tudo. Calma lá! Nesse caso, tem de ser agora. Não parece razoável que um ministro do Supremo e o procurador-geral da República, ainda que em último dia, refiram-se a ações -- ou inações -- sigilosas para salvar a democracia. É forçoso indagar: a cada vez que a PGR virou as costas para os crimes óbvios de Bolsonaro, ela o fazia sob o peso de uma ameaça, do risco de uma ruptura institucional?

Do que é que eles estão falando? Lembro que o próprio Toffoli teve um papel importante na preservação das instituições. A iniciativa de abrir de ofício o Inquérito 4.781 — uma espécie de investigação-mãe de outras tantas — tem um valor até premonitório. Como sabem, este escriba sempre defendeu o procedimento, visto por alguns colegas da imprensa e por alguns juristas como impróprio.

Sei, ainda, por suas ações, não por suas omissões, como outros ministros da Corte atuaram para garantir a ordem democrática. Alexandre de Moraes, como é evidente, ocupa um lugar de destaque nos embates. Na resposta legal e institucional aos crimes da Lava-Jato, sobressaiu-se Gilmar Mendes. Mas sabemos da atuação desses magistrados — incluindo Toffoli — por sua obra, não por sua omissão. Não é possível haver uma PGR cujo mister está em não fazer.

CONCLUO
A imprensa sempre tenta desvendar os bastidores da atuação de pessoas públicas. É uma de suas tarefas. A maior parte ficará sepultada em acordos de esquecimento e em relações de confiança. É até provável que o absoluto desvelamento de tudo tornasse impossível a vida em sociedade e estimulasse a luta de todos contra todos. Há muito mais sigilos de fato do que os garantidos em lei.

Todos sabemos como são as coisas. Pactos de silêncio existem até no meio familiar. Mas me parece que Toffoli e Aras não estão exercitando um mero fatalismo das relações. Este país venceu uma tramoia golpista, e o chefe da PGR estava entre aqueles que dispunham de instrumentos para diminuir os ímpetos do candidato a déspota. A sugestão de que ele o fez não fazendo, de que se manifestou por sua inércia, de que agiu por suas omissões é de extrema gravidade. Afinal, o que o ameaçava?

Jamais saberemos de tudo, está posto. Mas temos de saber o fundamental.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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