O dólar e o paradoxo: suaves com o golpista; sanguinolentos com o democrata
O dólar fechou a R$ 5,487, e a Bolsa sobe 0,4, a 126.163 pontos. A moeda americana pode cair ainda mais? Não muito. Depende da economia dos EUA, não da brasileira. Enquanto o juro por lá ficar na mesma, a cotação fica mais ou menos por aí. Na trégua dada pelos especuladores, é preciso começar a produzir registros para a investigação dos historiadores — na hipótese de o mundo não acabar, incluindo o paradoxo do título.
Depois da insanidade especulativa, há de se perguntar: "Qual a razão de queda forte do dólar em dois dias consecutivos?" A resposta parece óbvia:
- Lula e Haddad reafirmaram o compromisso com o arcabouço fiscal;
- Lula não criticou Roberto Campos Neto, presidente do BC e Demiurgo da Esfera Celeste.
JOGO PERIGOSO DE IRRESPONSÁVEIS
Que jogo perigosos esse para ficar nas mãos de irresponsáveis, não é? Mas assim são as coisas. Indago: Lula chegou a afirmar, em algum momento, que mandaria o arcabouço fiscal às favas? Não. Ele apenas fez a defesa dos gastos sociais. E expressou a sua discordância da política monetária, com críticas diretas a Campos Neto, sim, porque este, em suas intervenções, costuma ir muito além de suas sandálias. Era um agente político no governo Bolsonaro (ainda volto a esse ponto) e continua. Havia um situacionista presidindo o Banco Central e agora há um oposicionista. Sigamos.
É claro que não escapa à molecada birrenta e rancorosa que o presidente da República só reclama do chefe da dita "Autoridade Monetária" — que "autoridade" não é, mas mera "autorizada" — porque não pode mover uma palha contra ele. Ou pode? Lula pediu, por acaso, à sua reduzidíssima base no Congresso (quando o assunto é esse) que enviasse algum PLC (Projeto de Lei Complementar) mudando as regras da autonomia? Cadê? Havia alguma ordem expressa para dar de ombros para os gastos, e o resto que se danasse?
Isso tudo eram meras projeções mentais a alimentar a especulação. Cobrou-se do chefe do Executivo — e ele teve de resistir — que apresentasse de pronto um plano de cortes de gastos na área social que satisfizesse a sanha da turma. Lembrando certa personagem da Revolução Francesa, ao referir-se à retórica violenta de um adversário, seria o caso de dizer: "Deem um copo de sangue a estes canibais; eles estão com sede". As coisas se acalmaram por ora, com a obviedade dita por Lula e Haddad, que os sanguinolentos já conheciam. E que se note: não se tornaram herbívoros. Nada impede que retomem a caçada.
POLÍTICA E IDEOLOGIA
Independentemente do lugar em que eu esteja no debate ao longo do tempo, jamais ignorei o peso das escolhas políticas e ideológicas. Com um ano e meio de mandato, depois de tudo o que se viu, Lula já apanhou mais da pena de alguns varões de Plutarco do que um golpista desavergonhado e ensandecido ao longo de quatro anos. Sim, é uma escolha.
Um olhar atento para o viés de certos medalhões de si mesmos, e vamos notar o esforço que fizeram para normalizar o bolsonarismo; para demonstrar que o bicho não era tão feio como se pintava; para tentar evidenciar que, bem..., bastaria conter a retórica beligerante e educar um tantinho os mais entusiasmados, e Jair Messias seria não mais do que uma expressão aceitável e até meritória do espectro democrático. O revisionismo da extrema-direita "intelectual" já começou. Já há livrinhos negando que tenha havido risco de golpe. Até Marine Le Pen e Jordan Bardella, seu "potro" — modo carinhoso como ela o trata —, já andam a merecer um olhar de simpatia desses delinquentes.
Enquanto Bolsonaro, inspiração de teses e práticas fascistoides, passou a ser tratado com benevolência, com Lula deu-se o contrário. Goste-se ou não de seu governo, é um democrata. Mas aí os mesmos insanos disseram: "Nem por isso vamos tolerar suas loucuras econômicas" — "loucuras" que não há. Estamos diante de um paradoxo: assimilam-se as diatribes fascistoides de um inimigo da democracia, e se vergasta um democrata para que ele não vá tomando balda. O paradoxo está nos fatos. Esses "analistas", a seu modo, são coerentes.
Nunca tirem da mirada do futuro um olhar retrospectivo. Estes dias hão de ser clarificados. Os especuladores e seus porta-vozes espalhados por aí não queriam Lula naquela cadeira e tentaram, por exemplo, inviabilizar a PEC da Transição antes mesmo de ele tomar posse. Que os historiadores não se esqueçam: a tentativa de golpe ainda estava em curso, e o então presidente eleito começou a apanhar desses notáveis críticos da suposta farra fiscal. E não! Eu não acho que, "se risco de golpe existe, então tudo é permitido na economia". Mas também não estou entre aqueles que, em nome do que entendem ser "equilíbrio fiscal", topam qualquer parada.
MAIS UM POUCO SOBRE CAMPOS NETO
Recuperem, é fácil de encontrar, as falas de Campos Neto no evento promovido pelo Banco Central Europeu (BCE) em Portugal. Sim, ele falou sobre ruídos no Brasil envolvendo a questão fiscal, a disparada do dólar etc. Mas não estava nem entre lerdos nem entre inimigos do governo Lula. Então se viu constrangido a fazer o que não faz aqui dentro: evidenciar que os preços da especulação não eram compatíveis com a economia brasileira.
Sendo quem é, eximiu-se de qualquer responsabilidade, ainda que não explicitamente. Entendeu-se que os ruídos foram provocados por outros. Indagado sobre as críticas feitas por Lula, evocou a falsa evidência de sua "autonomia", cuja prova seria a elevação da Selic de 2% para 13,75% no governo Bolsonaro. Houve exagero num extremo e no outro, diga-se, mas ele próprio, os mercados e todo mundo que acompanha esse assunto sabem que operava em parceria com Paulo Guedes. Comportava-se como membro do governo. Participava de solenidade até do Plano Safra. E, por óbvio, não saía por aí a espalhar pessimismo.
Houve — e talvez esteja apenas contido — um movimento especulativo contra o real. Os que o promoveram e decidiram participar da festança tinham a certeza de que o BC ficaria inerme, como ficou. Houvesse ao menos a dúvida sobre eventual intervenção da Autoridade Monetária no mercado de câmbio, e temos reservas para isso, é claro que os mais ousados seriam menos irresponsáveis. Insisto: a questão é saber quem, de verdade, é "a autoridade monetária" e quem é um mero "autorizado". Ou cúmplice.
ATÉ QUANDO?
Eu mesmo escrevi aqui que era chegada a hora de o presidente deixar Campos Neto de lado. Estava alimentando o projeto pessoal de um adversário, o que me obriga a perguntar: o presidente do BC deixará de lado a política?
Quando será seu próximo papo com "uzmercáduz"?
Quando ele vai fazer o que jamais fez no governo Bolsonaro, a saber: previsões pessimistas sobre a economia brasileira?
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Quero receberQuando ele vai se arvorar de novo em governo do governo e, ainda que se modo oblíquo, tentar ser o mandatário também da política fiscal?
E, claro!, se o fizer e se Lula reagir, aqueles mesmos que piscaram para o bolsonarismo e são implacáveis com o petista atribuirão a Lula a responsabilidade por eventual disparada do dólar.
Afinal, estes varões e varoas de Plutarco não reconhecem ao chefe do Executivo, eleito pelo povo, a prerrogativa de responder a uma eventual provocação do chefe da Autoridade Monetária que, a rigor, nem voz deveria ter, falando por intermédio dos comunicados e atas.
TRUMP, FED E A CONCLUSÃO
Escrevam na área de busca do Google as palavras "Trump ataca Jerome Powell". Sem aspas. E verão quantas vezes o então presidente dos EUA desceu o sarrafo no chefe do Federal Reserve. E o fez já fora da Presidência.
O que fez a imprensa americana? Registrou e pronto. Sem escarcéu. Powell nunca respondeu. No máximo, em depoimento a uma comissão da Câmara, em 2019, respondeu que terminaria o seu mandato, que expirava em 2022. Não precisou sair. Joe Biden o reconduziu ao cargo.
Nos EUA, o presidente do FED não vira um fetiche dos mercados nem dos colunistas neuróticos e das colunistas nervosas. Allan Greenspan ficou 19 anos no cargo. Já notei aqui: as declarações políticas mais contundentes que fez em raros jantares foram estas: "Um uísque" e "obrigado!".
Não creio que Lula deva tomar Trump como modelo. O ponto não é esse. Apenas evidencio que ocorrências dessa natureza não despertam movimentos histéricos por lá. Aliás, note-se de passagem, a democracia americana está em risco, mas é de outra natureza.
Vamos ver qual será a próxima fagulha dos especuladores na certeza que o "brother" do BC não vai mexer uma palha. Ou vai: para o lado da fogueira.
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