Reinaldo Azevedo

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Opinião

Maduro e a "democracia do inimigo". Ou: Fascistas que falam com aves e cães

Pois é, pois é...

A exemplo do que ocorreu em 2018, o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, que é uma das extensões do chavismo, atrasou a divulgação de resultados parciais da eleição. Quando o fez, pouco depois da meia-noite, antecipou a vitória do ditador Nicolás Maduro. Com anunciados 80% da apuração concluídos, ele teria 51,2% dos votos, contra 44,2% do opositor Edmundo González, e a virada já não é mais possível. Estavam aptos a votar 21 milhões de eleitores, mas só 59% compareceram às urnas — e, com efeito, avaliava-se que uma participação reduzida era ruim para a oposição. Bem, precisamos pensar se existe algo como "a democracia do inimigo".

Pesquisa do Instituto Delphos — que apontava, note-se, o favoritismo de González na declaração de voto ao menos — informava que a probabilidade de o eleitor do atual presidente comparecer para votar era maior do que a de alguém identificado com a oposição: 68% a 48,4%. Por que acontece? Pode ter a ver com a confiança da possibilidade de mudança. Em 2015, nas eleições legislativas, votaram 76% dos inscritos, e a oposição fez maioria na Assembleia. Em 2018, com adversários de peso do governo impossibilitados de concorrer, a participação ficou limitada a 46%. Desta feita, o número é bem maior, mas, ainda assim, menor do que os que apostavam numa mudança de rumos.

A democracia — que inexiste na Venezuela — também precisa de confiança. E eis o busílis. Os partidários de González afirmavam na noite de ontem que tinham tido acesso a apenas 30% das atas eleitorais. Mesmo com dados parciais, projetavam uma vitória que não veio — ao menos segundo o Conselho Eleitoral da Venezuela.

Nicolàs Maduro e passarinho; Milei e Cachorro
Nicolàs Maduro e passarinho; Milei e Cachorro Imagem: Reprodução

E AGORA? E O BRASIL?
O que vem agora? Ninguém sabe. Tanto o governo como a oposição pregavam, certos do triunfo, em respeito ao resultado das urnas. E, neste ponto do texto, pode-se dizer: para o Brasil, à diferença do que pode inferir certo senso comum, aconteceu o pior. Celso Amorim, assessor especial de Lula, está lá como um dos observadores e, em certa medida, fiador do processo eleitoral. Trata-se de mais um erro que o governo Lula comete em relação à Venezuela.

"Erro por quê? O processo não é auditável, como assegura Maduro". O problema está justamente naquele que assevera a seriedade da coleta de dados em si. À diferença do que ele diz, as "certificações" não são independentes, como ocorre no Brasil, sistema que o tiranete atacou. Uma coisa é dispor de condições técnicas para fazer uma disputa limpa; outra, distinta, é fazê-la. Assim como a ditadura decidiu quem podia e quem não podia concorrer, resolveu desconvidar observadores da União Europeia e da Argentina — era o esquerdista Alberto Fernández, não um aliado de Javier Milei. De todo modo, acompanharam o pleito o Centro Carter, dos EUA, e as Nações Unidas.

"Então por que as suas reservas, Reinaldo?" Porque eu não considero — e não há a menor chance de mudar de ideia ou de critério — que a democracia se limite à realização de eleições, ou eu teria de aplaudir as "democracias" do Irã, da Hungria e da Turquia, que democracias não são. Quando não há igualdade de condições na disputa, a escolha já está maculada. Por isso há uma contradição apenas aparente quando se afirma que o tal CNE anunciou a "vitória eleitoral do ditador". Poder-se-ia indagar: "Desde quando ditador faz eleições?" Faz, sim. É preciso distinguir os regimes de força que usam a disputa viciada para dar uma aparência de legalidade ao regime daqueles que nem precisam fazê-lo porque o poder é exercido em moldes absolutistas, a exemplo de tiranias do Oriente Médio.

ELEIÇÃO FRAUDULENTA COM FRAUDE OU SEM
Eis a razão por que me opus a que o TSE fosse um dos observadores deste domingo -- especialmente depois do agravo estúpido do bufão truculento. Adicionalmente, considerei e considero que foi um erro a ida de Amorim. O excesso de confiança de Maduro e sua arrogância, ousando falar em banho de sangue a depender do resultado, pareceram-me maus augúrios.

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Insisto num ponto: ainda que não tenha havido nenhuma falcatrua no sistema de contagem, de sorte que o "incumbente" tenha tido mesmo mais votos do que González, o processo continua a ser uma fraude essencial às regras de um regime democrático. E olhem que essa tal democracia comporta até exotismos como o modelo americano, em que nem sempre o mais votado vence, mas todos disputam em condições de igualdade, o que não acontece na Venezuela.

Setores de esquerda no Brasil, note-se, incidem numa grande falha moral ao tentar justificar aquele regime e cometem também um erro estratégico — relacionado à política interna — ou dar nó no verbo para evitar a condenação sem reservas do que se passa por lá. Ainda que eu tivesse alguma tentação para justificar aquele troço — sob o pretexto de que, sei lá, é preciso conter os reacionários —, eu não o faria. Sei bem que corrente de pensamento tentou esmagar a oposição no Brasil pretextando conspirações e buscou assentar as suas prefigurações no aparato militar. E a Venezuela é também uma ditadura militar.

A despeito das peculiaridades de cada país, as regras têm de ser as mesmas para todos — ou, então, se aceita a tese da "Democracia do Inimigo". E, nesse caso, dá-se um jeito de apelar à lei, incluindo as de exceção, para tirá-lo do jogo. Num país, por exemplo, em que 40% não têm acesso à Internet, o mandatário é onipresente na televisão, a que seus adversários não têm acesso. O aparato judicial, também controlado pelo regime, desqualificou opositores para a disputa.

Há presos políticos no país, o que o procurador-geral Tarek Saab, outro esbirro da ditadura, nega. Segundo diz, os cerca de 300 encarcerados por razões políticas são "terroristas".

O QUE FARÁ A OPOSIÇÃO?
Vamos ver o que fará a oposição, com seus 40 e tantos por cento, o que, por si, é resultado bastante expressivo. A pregação em favor do respeito ao resultado estava fortemente assentada na premissa da vitória.

Maduro está no poder há 11 anos. Com mais seis, ficará pelo menos 17. Se alguém quer ter alguma esperança, pode considerar: quem sabe, dado o percentual, mesmo o oficial, eloquente dos queriam apeá-lo, ensaie uma transição e aposte num governo de transição. Agora o meu ceticismo: transição de quê para quê? Parece-me que essa poderia ser a trilha de González, obviamente um moderado.

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Há o risco nada desprezível de que os setores mais radicais, que condescenderam com a sua candidatura, resolvam que a pregação da moderação, então, se mostrou inútil. Esse discurso poderia ser neutralizado se o agora declarado vitorioso decidisse, ao menos, ser o reformador do próprio regime. Ocorre que me lembro das conversas havidas no tal "Grupo de Barbados" e do que o tirano fez em seguida, desmoralizando aquela rodada de negociações.

Nem os passarinhos têm motivos para acreditar neste senhor. Voltemos a 2013, ano em que Hugo Chávez morreu. No esforço bem-sucedido, para ele ao menos, de assumir a cadeira do coronel morto, anunciou que o outro lhe apareceu na forma de um passarinho:
"Senti-o aqui, como uma bênção, nos dizendo: 'Hoje começa a batalha. Rumo à vitória. Vocês têm nossa benção'. Eu o senti da minha alma".

ZOOLOGIA POLÍTICA DOS DESPREZÍVEIS
Que coisa! Javier Milei, presidente da Argentina -- este fala com cachorros -- se manifestou ontem no Twitter nos seguintes termos:
"DITADOR MADURO, FORA!!!
Os venezuelanos optaram por acabar com a ditadura comunista de Nicolás Maduro. Os dados anunciam uma vitória esmagadora da oposição, e o mundo espera que esta reconheça a derrota após anos de socialismo, miséria, decadência e morte.
A Argentina não vai reconhecer mais uma fraude e espera que, desta vez, as Forças Armadas defendam a democracia e a vontade popular.
A liberdade avança na América Latina."

É a zoologia política de homens desprezíveis em tempos sombrios. É evidente que um chefe de Estado não pode se referir à política interna de um outro país nesses termos. De resto, de miséria e decadência, este outro biltre entende bastante.

É provável que, daqui a pouco, a democrata Kamala Harris e o golpista republicano Donald Trump se manifestem sobre o resultado no Império do Norte. Adivinhem quem tem um bom pretexto para carregar na hipocrisia...

Quanto ao Brasil... Bem, acho que é preciso manter relações especiais com quem fala língua de gente e tem a democracia como valor inegociável, nunca com fascistas que falam com aves e cães. Com os demais, bastam as relações formais, segundo os nossos interesses comerciais.

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Ou se acaba dando bom-dia a cavalo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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