Silvio-Anielle: eis um texto contra o assédio e contra tribunais de exceção
Um dia depois de Silvio Almeida ter sido esquartejado em praça pública antes das provas, milhares de pessoas foram à Paulista para cobrar a anistia a condenados com provas. Também querem, como é sabido, o impeachment de Alexandre de Moraes, ministro-relator do Supremo que conduziu os processos. Dada a temporalidade dos eventos e o "timing" do "Me Too Brasil", o massacre de Almeida serviu de esquenta para o ato convocado pela extrema-direita fascistoide. E, segundo se reporta, assim as coisas se deram nas redes. O resultado não foi lá essas coisas para a fascistada. Mas isso, em particular, é matéria para outro texto.
Ou bem a gente começa a pensar a respeito de certas práticas, ou bem se cria um novo tribunal no Brasil, composto por membros dessa ONG, que poderia ser batizado de STES: Supremo Tribunal de Execução Sumária. Há uma algaravia condenatória segundo a qual não há alternativa ao aplauso a uma cabeça no poste (a de Almeida) ou à condescendência com o assédio.
Sempre que debatedores e opinadores se veem na contingência — e vou fazer precisamente isto agora — de evidenciar seu compromisso com os direitos fundamentais e com a civilidade como uma espécie de alerta e vacina para que não sejam mal compreendidos, isso é evidência de que se está sob o signo de uma doxa que não admite contestação ou contraditório. Aí se torna obrigatório dizer, por exemplo, que apontar as ilegalidades da Lava Jato não implica conivência com a corrupção; que condenar o massacre do povo palestino não é um flerte com o ataque terrorista do Hamas; que se opor à execução sumária de um ministro não é uma forma de minimizar a agressão às mulheres.
Já me expressei a respeito no programa "O É da Coisa" na BandNews FM e no BandNews TV. Torço muito para que o ex-ministro consiga provar que nada fez de errado, dado que, nessa área, o princípio da presunção da inocência — segundo o qual cabe ao acusador o ônus da prova — entrou em falência faz tempo. E também isso precisa ser compreendido à luz da realidade.
De fato, ao longo da história, homens usaram a sua posição de poder para assediar mulheres, que não encontravam caminho para que sua voz fosse ouvida, de sorte que o aparato legal acabava, na prática, protegendo o criminoso, não a vítima. Posto isso, pergunto: podemos abrir mão, no caso do assédio ou de outro crime qualquer, da presunção da inocência? Sem ela, teremos o quê? Logo, e chegarei lá, é preciso que se faça também um questionamento sobre os métodos do Me Too.
A DEMISSÃO
Dadas as circunstâncias -- a voragem desencadeada pela denúncia do Me Too e a informação, nunca contestada por Anielle Franco, de que ela própria havia sido sexualmente importunada --, não restava ao presidente Lula alternativa à demissão de Almeida.
Se, na esfera penal, a presunção da inocência pede que o acusador apresente a evidência de que o crime foi cometido, já que o acusado não tem como produzir prova negativa — a menos que tenha um álibi para contestar cada uma das acusações, o que é impossível porque ele as desconhece —, não é assim na política. Um ministro não pode continuar no cargo com tal suspeita sobre os ombros, mormente se titular de uma pasta que defende os direitos humanos e a cidadania. Ainda que só cuidasse, sei lá, de Assuntos Aleatórios e Generalidades, como permanecer?
O tempo e os critérios da política não são os de um processo. E por isso mesmo é preciso que se tome especial cuidado.
SOBRE O DEVIDO PROCESSO LEGAL
Retomo um fio lá do começo para dar continuidade à tessitura do meu texto e convidá-los a algumas reflexões. Vivemos um tempo muito particular em que criminosos contumazes reivindicam o seu suposto "direito" de afrontar o Código Penal e a Constituição. Faz-se um ato em defesa do impeachment de um ministro do Supremo que ousou e tem ousado cumprir a lei, o que, ó desdita!, tem-lhe rendido a animosidade até de setores da imprensa.
Um fanfarrão na Presidência da República passou quatro anos a ameaçar o país com um golpe de Estado. Reuniu o seu ministério, incluindo o da Defesa, no dia 5 de julho de 2022, com o fito de suspender a realização da eleição. Não tendo logrado o intento e tendo sido derrotado, maquinou modos de impedir que se cumprisse a vontade da maioria expressa nas urnas. Dado um novo malogro, chegou-se ao 8 de janeiro de 2023. O evento deste 7 de setembro pede que se passe uma borracha na história e que se puna o juiz que ousou expulsar do jogo os que estavam em campo para quebrar canelas, não para jogar bola.
O que isso tem a ver com Almeida, Reinaldo? A ordem democrática trava uma luta agônica, de vida ou morte mesmo, com as forças do caos. E não é só no Brasil. Já há farta bibliografia a respeito. Os que estamos em defesa de tal ordem — e eu estou — não temos outra arma que não a afirmação dos nossos princípios, tão permanentemente vilipendiados nas redes, por exemplo, e dos nossos valores. E um deles atende precisamente pelo nome de "devido processo legal".
"Ah, mas não querem a cabeça de Alexandre justamente porque ele não o respeita?" Não! Eles a querem precisamente em razão do contrário: porque não aceitam que os ditames da vida democrática imponham limites a suas ações, vontades e prefigurações escatológicas. Quando até a OAB recorre a uma ADPF para contestar decisão de ministro e de Turma do Supremo, sabendo que o instrumento é escandalosamente impróprio para tal fim, não se trata apenas de uma divergência; o que se tem é a depredação dos fundamentos do estado de direito.
ERROS
Não havia como, sabemos, Almeida permanecer no governo, e sua demissão foi fulminante depois que o Me Too tornou pública a acusação, sem o desmentido de Anielle Franco. Se verdadeiro o buchicho de que suspeitas circulavam havia tempos pelos corredores de Brasília, é preciso, então, que se revejam ou se criem protocolos.
Sendo assim, há uma coleção de erros. Se realmente importunada, a ministra não poderia ter permitido que o caso ficasse no limbo. Ou bem cobrava uma atitude do governo e, não sendo atendida, deixava a pasta, explicando a razão, ou bem colocava a conveniência política acima de sua indignação. Se, por seu turno, Almeida tinha ciência de que algo se adensava a ameaçar o seu cargo, deveria ter mobilizado instâncias oficiais ou para confrontar acusadores ou para deixar a função. Sendo como se diz, igualmente erraram todos os que, podendo interferir, permitiram que o caso ficasse fermentando até que uma ONG, falando em nome de denunciadoras anônimas, optasse pelo "cortem-lhe a cabeça", usando a guilhotina da imprensa.
Não me peçam para condescender, em qualquer caso, com instrumentos discricionários, ainda que não oficiais. Sei bem o quanto me custou — e como foi caro! — opor-me aos métodos da Lava Jato. Naquele tempo, para apelar a expressão bíblica, uma miserável indagação sobre os métodos de Sergio Moro ou de Deltan Dallagnol tornava o autor suspeito de conivência com a corrupção. Hoje, eles são quem são. Dallagnol, diga-se, estava num dos carros da Avenida Paulista, a pedir o impeachment de Moraes.
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Quero receberUma coisa é Almeida não ter como permanecer no governo, e não tinha; outra, distinta, é receber tratamento de condenado sem que se conheçam nem mesmo suas acusadoras. À diferença de alguns colegas, acho, sim, relevante que a ONG tenha tido seus interesses contrariados pelo Ministério, numa licitação envolvendo alguns milhões, antes da denúncia fulminante. Nesse caso, tem de valer o que, antes, valia apenas para a mulher de César e, hoje, felizmente, vale também para o marido da mulher de César: não basta que sejam honestos; também têm de parecer.
Ou os meus colegas vão ignorar o fato de que, sendo verdadeira a história de que a suspeita já circulava para cá e para lá, as negociações milionárias do Me Too se desenvolviam enquanto, nos subterrâneos, existia uma espécie de ameaça? A resposta furiosa da ONG à nota emitida por Almeida em suas ultimas horas no ministério não resolve a questão. As coisas se deram ou não daquela maneira?
QUE SAÍDA?
Almeida enfrenta a maior de todas as punições, que é a impossibilidade de se defender porque, por ora, o que se tem é a acusação de uma ONG, antes de qualquer investigação, e a da ministra Anielle, ainda que vazada numa linguagem indireta. É claro que existe a possibilidade de que tudo seja verdade. Não estou eu aqui a asseverar a inocência de Almeida. Como eu poderia fazê-lo? Mas que sistema de direito se está erigindo no país quando se atribui a uma entidade, que ouve pessoas que não se mostram, um poder que nenhum tribunal superior tem: o da condenação sem direito a defesa ou recurso?
Sim, eu mesmo escrevo acima que a natureza do assédio supõe que se busque uma saída que impeça o criminoso de se esconder nas dobras da lei. Se me perguntarem agora qual é o caminho, também não sei. Talvez se possa pensar numa vara especializada de Justiça, em que o acusado e seu defensor possam saber quem são os acusadores, com os processos tramitando em rigoroso sigilo — e, nesse caso, para proteger as vítimas, já que, então, teriam tomado a decisão de não aparecer.
Não estou aqui, de modo oblíquo, a pôr em dúvida o testemunho das mulheres que disseram ao Me Too terem sido assediadas por Almeida. Como eu poderia fazê-lo? Não sei quem são nem conheço as circunstâncias. Mas também não sabem e também não conhecem os que estão tratando o ex-ministro como culpado. Li em algum lugar que só os homens se importam com esta questão. Em primeiro lugar, não é verdade. Em segundo lugar, não se trata de um debate de gênero. Temos de nos perguntar se podemos trabalhar com o conceito de que existem acusadores que estão acima da lei. Se decidirmos que sim, estamos também admitindo que existem acusados que estão abaixo do direito de defesa. Sendo o Me Too, nesses casos, o porta-voz legitimado das vítimas, então se terá criado a quarta instância da Justiça em que se condena sumariamente, sem julgamento.
TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO E IDEOLOGIA
Situei o caso de Almeida no Brasil de hoje. Para quê? Para criar diversionismo? Para assegurar que ele é inocente? Os que leram com atenção sabem que não. Quando evoco, acima, as lambanças do bolsonarismo e a tentativa de derrubar um ministro do Supremo porque este condenou golpistas com provas, estou chamando a atenção para o fato de que, mundo afora, a prática típica e recorrente da extrema-direita consiste em desmoralizar a Justiça, acusando-a de ser seletiva e de estar a serviço do interesse de... (as acusações variam segundo os fascistoides locais) comunistas, globalistas, ateus etc.
A rigor, não querem Justiça nenhuma. Advogam o vale-tudo do que chamam "liberdade de expressão" porque querem eleger, sem que respondam por isso, os inimigos que lhes são úteis: os esquerdistas, os imigrantes, os gays, as mulheres, os negros... Usam as redes e suas milícias digitais como tribunais de exceção. Espezinham, humilham, avacalham, promovem linchamentos virtuais.
No caso de Almeida, extremistas de direita — notórias e notórios inimigos do feminismo e das políticas afirmativas para negros — levantaram a sua voz não para se solidarizar com Anielle e com as acusadoras ainda anônimas, mas para espezinhar os então dois ministros, os progressistas, as políticas de reparação, o livro de Almeida sobre o racismo estrutural, as lutas contra a barbárie, que constituem pauta importante do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e da Igualdade Racial. Seriam, asseguram esses monumentos morais, todos hipócritas. E, claro!, a verdade estaria com eles, que se orgulham de seu antifeminismo, de sua oposição às políticas afirmativas e de seu apego, que pretendem contestador, ao politicamente incorreto.
Quando deixam claro não respeitar a Justiça porque esta seria parcial — e se ouviu isso de novo no evento flopado da Paulista —, estão, na verdade, a deixar claro que só aceitam o seu próprio julgamento, segundo os seus próprios critérios.
Nem o Me Too nem entidade nenhuma, pouco importa a causa que defendam, podem ambicionar a condição de tribunal de exceção. Como fazer para que o direito de defesa não proteja o assediador? Acima, dou uma sugestão. Muitas outras podem ser debatidas. Uma coisa me parece inequívoca: a parceria de uma ONG com um veículo de imprensa não pode ser uma sentença única e irrecorrível.
Não faz tempo, advogados do grupo Prerrogativas se levantaram, de modo correto, contra a palavra do delator como prova e estão na raiz de uma mudança importante na Lei 12.850: a delação é meio para obtenção da dita-cuja. Sabemos o que a aberração que estava em curso custou ao Brasil. "Está comparando uma eventual vítima de assédio com um delator, Reinaldo?" Não. Mas o Me Too não pode ter mais poder do que tinha a teratológica Lava Jato naqueles dias insanos, que levaram o país à ruína.
ENCERRO
Que se faça, no caso das acusações contra Almeida, a devida investigação e que ele arque, se culpado, com as consequências, na forma da lei.
O grupo Prerrogativas, diga-se, só se formou porque advogados diziam não aceitar o vale-tudo da Lava Jato, não é isso?, nem a conversa de que o combate à corrupção era tão importante que se podia abrir mão do devido processo legal, ou, de outro modo, não se faria justiça. Aquele Prerrogativas estava certo.
Este é um texto inequivocamente contra o assédio. E contra tribunais de exceção.
Ah, sim: "E se a investigação vier a comprovar, Reinaldo, que o ex-ministro é culpado das acusações?" Não retiro uma linha do meu texto. Eu o escrevo em defesa do devido processo legal, não da impunidade. Ou teria ido neste 7 de setembro à Avenida Paulista aplaudir a fascistada.
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