Reinaldo Azevedo

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Venezuela e Brasil: a democracia não pode ser o último refúgio dos canalhas

Quem me acompanha nesta coluna; no "Olha Aqui", neste UOL; em "O É da Coisa" (BandNews FM e BandNews) e nas redes sabe o que penso sobre o regime venezuelano, sobre Nicolás Maduro e sobre as escolhas feitas pelo governo brasileiro nesse caso. Em síntese: a Venezuela é uma ditadura; o governante de turno é um tirano, e há sinais escancarados de fraude eleitoral. Lula não deve dizer a governantes como se comportar — tem é de facilitar negócios com outros países —, mas convém evitar relações especiais com autocratas.

Evoco tudo o que já escrevi e falei para reiterar — e atualizar — a repulsa àquela patuscada truculenta e a impossibilidade de qualquer forma de conciliação com a farsa. Mas convém registrar também a hipocrisia, por aqui, de alguns normalizadores do fascismo caboclo, inclusive na pele imunda de colunistas, que instrumentalizam o episódio para tentar lavar seu reacionarismo abjeto. A defesa da democracia pode ser, em certas circunstâncias, o último refúgio de um canalha.

A frase, alguns devem ter percebido, ecoa um pensador inglês do século 18 (1709-1784) que foi escritor, dicionarista, político, além de um monte de outras coisas, segundo quem "o patriotismo é o último refúgio de um canalha". E é certo que, dada a sua história, Johnson não achava que defender os interesses do país fosse postura própria de quem se junta numa matilha moral. Registro à margem: não emprego "matilha" por acaso. "Canaglia" é a junção de "cane" (cão) e "aglia", um sufixo a indicar coletivo em sentido pejorativo. Adiante.

A frase de Johson foi proferida em 1775 e diz respeito a uma questão política. Os "Patriotas" constituíam uma corrente ideológica do seu tempo, para a qual ele produziu textos. O mais famoso é precisamente "The Patriot", em que defendia efusivamente o voto em tal corrente. A íntegra está aqui. Lá se lê, por exemplo:
"Um patriota está sempre pronto a apoiar as reivindicações justas e a animar as esperanças razoáveis os] e a multiplicar garantias.
Mas tudo isso pode ser feito só na aparência, sem patriotismo real. Aquele que cultiva falsas esperanças para servir a um propósito oportunista apenas abre caminho para a decepção e o descontentamento. Aquele que promete se esforçar, sabendo que seus esforços não terão resultado, apenas ilude seus seguidores com um clamor vazio e com resultado ineficaz."

O texto tem de ser lido, claro!, à luz de seu tempo. Mas Johnson era tanto um patriota como um "Patriota". Quando cravou a frase, um ano depois de seu panfleto, estava a dizer que aquela corrente política havia sido tomada por vigaristas — daí que o movimento que ele próprio defendia houvesse se tornado o "último refúgio de um canalha".

ENTÃO VOLTO
O que Johnson lamentava nos contemporâneos que passaram a falar a linguagem dos "Patriotas", chamando-os de canalhas? A inverdade, a hipocrisia e o oportunismo.

Observem que vou ignorar aqui as críticas de golpistas bolsonaristas à condução do Itamaraty no caso da crise venezuelana.

Patético é constatar que algumas lorpas em pele de analistas — dedicadas à normalização do bolsonarismo e da extrema direita mundo afora — passaram a usar o caso da Venezuela para acusar Lula de não ser um democrata. É mesmo?

Nos dejetos que produzem rotineiramente a céu aberto, são capazes de ver Marine Le Pen convertida à democracia; saúdam na candidatura Trump o triunfo da vontade do eleitor porque inexiste nos EUA algo "terrível" como um tribunal eleitoral; demonizam o STF e o TSE, que exorbitariam de suas atribuições no combate ao golpismo e aos golpistas... Mas, a exemplo dos canalhas de que falava Johnson, correram para o "refúgio" da "defesa da democracia" quando o assunto é a eleição venezuelana.

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Que fique claro: as contraditas de quem vive a dar piscadelas para os fascistoides não transforma em coisa boa o que não presta — e Maduro não presta — nem torna certa uma decisão errada, e o encaminhamento, no governo brasileiro, da questão venezuelana é uma soma de desacertos. Mas, a exemplo de Johnson, é preciso que a gente preste atenção a quem está dizendo o quê. O coro justo e digno em defesa da democracia não se confunde com o ladrar raivoso de reacionários delirantes.

ENCERRO
Ainda que Lula tomasse uma decisão politicamente errada e reconhecesse a vitória de Maduro, é evidente que o desatino não anularia as suas credenciais democráticas. Isso é papo de biscateiro do antilulismo. Indago: muitos dos líderes que declararam a vitória da oposição na Venezuela mantêm ou não parcerias sólidas com tiranos e até com genocidas?

Não anularia, mas pergunto: "Para quê?" E notem: não se trata de se deixar pautar pelos inimigos. Estes antipatizam até com o crescimento do emprego e da renda. A pauta é a democracia. Aquela que Lula encarnou e encarna aqui, contra os canalhas "refugiados" no discurso democrático, que gritam pelo respeito às urnas na Venezuela, mas flertam com golpistas nativos.

Samuel Johnson: o que ele quis dizer mesmo ao afirmar que o patriotismo era "o último refúgio de um canalha"?
Samuel Johnson: o que ele quis dizer mesmo ao afirmar que o patriotismo era "o último refúgio de um canalha"? Imagem: Reprodução

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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