Datafolha - Marçal prova que o abismo olha para os que olham para o abismo
Cuidado ao olhar para o abismo. Ele pode olhar para você.
Há, sim, gente mirando os "pélagos profundos", e eles começam a chamar: "Venham, mergulhem aqui".
A ascensão do tal Pablo Marçal, de um tal PRTB, na disputa eleitoral de São Paulo causa espanto, indignação, estupefação... E, no entanto, é o que temos. Repetindo todos os mantras do obscurantismo bolsonarista, mas sem fazer parte daquela grei — afinal, ele é chefe de seu próprio rebanho —, atraiu parte considerável do eleitorado de extrema-direita que considera Ricardo Nunes (MDB), como posso dizer?, manso demais para o seu rancor; suave demais para o seu ódio; inclusivo demais para as suas fobias; pacífico demais para a sua beligerância.
Sim, é verdade! É Marçal quem vocifera com mais propriedade em São Paulo a catilinária abjeta do bolsonarismo. Que momento grotesco! Assistimos a um bate-boca público entre o "coach" e aquele que passou quatro anos ameaçando empastelar as instituições; que comandou há dois anos, em 5 de julho de 2022, uma reunião ministerial para tentar impedir a realização de eleições; que apresentou a militares de alta patente nada menos do que a minuta de um golpe de Estado; que se escafedeu do país três dias antes do término do seu mandato, deixando atrás de si milhares de fanatizados que tentaram depor, sob a sua inspiração, o presidente legitimamente eleito.
O que, em essência, distingue a pregação de Marçal da de Bolsonaro?, perguntam-se os que se querem discípulos do capitão. E, com razão prática, eles próprios respondem: "Nada!" Com efeito, não há o que diferencie a barbárie discursiva do ex-presidente das insanidades que Marçal excreta por aí, sem nenhum compromisso com os fatos, com a biografia alheia, com um senso mínimo de moralidade. E aqui é preciso ficar atento a detalhes.
Enquanto escrevo, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o "intelectual" da família, já gravou dois vídeos contra o ainda candidato do inexistente PRTB. Em ambos, fica evidente que não há divergências de fundo entre as postulações. Resta, então, acusar o mais recente desafeto de não ter sido firme em defesa de Bolsonaro em 2022 e de não ser confiável, citando personalidades que foram expurgadas das fileiras do capitão sob a acusação de traição.
Não há nem burros nem inocentes por ali. Duvido que os Bolsonaros e boa parte dos políticos de extrema-direita que lideram acreditem nas bobagens que prodigalizam por aí. Trata-se de bugigangas conspiratórias para consumo ou de incautos ou de outros que se beneficiam das mesmas vigarices. Essa gente não é a elite de um movimento organizado; de uma corrente ideológica; de uma escola de pensamento de intervenção política, de um saber acumulado...
Ainda que sua pregação encontre, sim, eco entre pobres, especialmente em razão da guerra de valores que promovem, estão na política — e isto é invariável — para garantir ainda mais privilégios aos ricos; para tentar impedir a ascensão, na sociedade e na política, de camadas subalternizadas; para barrar o progresso social e para obstar medidas corretivas da desigualdade.
Para o bolsonarismo — e isto que vai agora não é uma caricatura, mas fato constatável também nas votações no Congresso —, os oprimidos não são os sem-terra e os indígenas, mas os ruralistas; não são os negros, mas os brancos que seriam prejudicados pelas cotas; não são as mulheres, mas os homens supostamente discriminados pelo feminismo; não são os nordestinos, mas os sulistas e sudestinos que "sustentam os preguiçosos"; não é a comunidade LGBTQIA+, mas os heterossexuais "perseguidos pela patrulha gay"; não são os alvos das piadas racistas e homofóbicas, mas os "humoristas" que só conseguem fazer rir contando... piadas racistas e homofóbicas.
Trata-se, em suma, de uma contrafação estupidamente vigarista do pensamento conservador. Até porque, com efeito, conservadores esses caras não são — ou estariam empenhados em conservar instituições, não em golpeá-las. Ora, Pablo Marçal dá conta perfeitamente desse recado. Não é fácil um outro progressista tomar o lugar de Lula — Ciro Gomes, por exemplo, desistiu e hoje prega a inimigos das esquerdas —, mas não é assim tão complicado arrombar a cidadela do bolsonarismo. Basta que se vomitem as mesmas indecências, apelando aos mesmos métodos que transformaram um capitão reformado destrambelhado no líder da reação.
DATAFOLHA
E eis, então, que, no Datafolha, Pablo Marçal aparece à frente de Nunes (que caiu de 23% para 19%), saltando sete pontos em três semanadas -- de 14% para 21% --, em empate técnico com Guilherme Boulos (23%). A enorme frente de partidos que apoia a reeleição do prefeito, o que inclui o PL de Bolsonaro, é atropelada em poucos dias pela voragem de um candidato que tem como aliados duas pessoas investigadas por vínculos com o PCC e uma terceira que foi condenada por integrar o "novo cangaço". O candidato do PRTB nem mesmo se ocupou de demonstrar alguma indignação com a publicação das informações.
Voltemos aos olhos do abismo.
O ABISMO
Há mensagens de Marçal estimulando influenciadores a divulgar seus vídeos mediante remuneração, o que levou o promotor eleitoral Fabiano Augusto Petean a pedir a cassação do registro de sua candidatura por abuso de poder econômico. Daniel Sorriso, que tem 118 mil seguidores numa rede social, publicou uma foto que mostra um comprovante de pagamento de R$ 8.500, via Pix, feito por uma das empresas de Pablo Marçal. Se verdadeiro, a prova da ilegalidade já é pública. Há patentes irregularidades também na formalização da própria candidatura no tal PRTB.
A acusação asquerosa de que Boulos consome drogas segue nas redes do "coach". De modo incompreensível, o TRE suspendeu o direito de resposta do candidato do PSOL. No despacho, chega-se a falar em "supostos fatos inverídicos". No dia em que tal expressão for empregada como sinônimo de calúnia, caberá ao caluniado provar a própria inocência.
A Justiça Eleitoral dispõe de instrumentos para barrar Marçal. Mas, como resta evidente, existem as instituições e existem as pessoas que lhes conferem efetividade. Se estas não agem para dar vida àquelas, então o que se tem é impunidade.
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Caminhando para a conclusão, obrigo-me a lembrar o papel firme do TSE, muito especialmente sob a gestão de Alexandre de Moraes, na garantia da normalidade democrática. Mas, para tanto, foi preciso enfrentar os militantes do caos, o que rendeu e rende ao ministro o ódio de extremistas de direita espalhados nos mais diversos setores, incluindo a imprensa.
Neste momento, os obsedados do abismo só pensam num eventual processo de impeachment contra Moraes, com o argumento falacioso — que infantilidade seria não houvesse em tal faina o cálculo que mira o caos — de que, no enfrentamento do golpismo, inclusive no curso do processo eleitoral, ele teria ido além dos ritos. Pois é... Só não conseguem acusá-lo de ter cometido ilegalidades. E daí? O público da manifestação bolsonarista de 7 de Setembro está garantido. Muita bobagem se escreve por aí, note-se, sobre o Supremo, como se ele estivesse na raiz das crises. Qual delas nasceu no tribunal?
A democracia dispõe de instrumentos para enfrentar tipos como Bolsonaro ou Marçal. Não é fácil. A caça a Alexandre prova que não. E também a atração pelo abismo.
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