Reinaldo Azevedo

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Opinião

Marçal em debates e sabatinas normaliza o ataque fascistoide à democracia

Com um misto de indignação e melancolia, assisti ontem ao debate promovido por TV Gazeta e MyNews com os candidatos à Prefeitura de São Paulo. Não mudei meu ponto de vista, já expresso no "Olha Aqui", neste UOL, e em "O É da Coisa", na BandNews TV e no BandNews FM. Os embates entre os postulantes, promovidos pela imprensa, com a presença do tal Pablo Marçal, têm servido para normalizar o absurdo, para rotineirizar o bizarro, para suavizar o escandaloso. E, pois, com todas as vênias a quem pensa o contrário, reitero: ou bem se impõe uma linha de corte na indecência — e o "coach" não pode ser admitido em eventos dessa natureza —, ou o jornalismo profissional se torna refém e promotor involuntário e passivo da bandalheira.

Todos protagonizaram, dirá o leitor, seus maus momentos, e não houve quem, num embate travado na lama, tivesse saído com a roupa imaculada. É uma verdade factual que, não obstante, nos afasta da leitura correta do problema. Era certo, e será assim em novos confrontos, que não se assistiria a um certame de normalistas do século passado. E não estou aqui a cobrar que fosse.

O ponto é outro. Indago: o tal participa realmente de um debate, ainda que para esgrimir ideias erradas e tortas e propostas mirabolantes? Fosse assim, seus adversários se encarregariam de apontar suas falácias, e ele próprio, cumprindo o seu papel, tentaria fazer o mesmo com seus oponentes. Mas não.

No debate de ontem, enquanto um adversário falava, Marçal se aproveitava da regra que mantinha sua imagem no ar para fazer micagens que desqualificavam o outro; para desenhar no ar, com os dedos, o seu número; para fazer com a mão a letra "M"... E não foi contido porque não se imaginou que, para desmoralizar um contendor, pudesse recorrer a uma diatribe não antevista nas vedações. Chamá-lo para um debate corresponde a propor que se jogue xadrez com um pombo. Ninguém vence a peleja em si. Mas só um pode arrulhar, derrubar as pedras e ainda fazer cocô na cabeça do oponente.

O IDIOTA DELIBERADO
Marçal já confessou, em bate-papo no podcast "Flow", que age deliberadamente como um idiota porque, segundo diz, é isso o que quer o eleitor. E não tenho como chegar a outra conclusão que não esta: a cada vez que o jornalismo e os jornalistas põem a sua credibilidade para ouvir Marçal, seja em entrevistas, seja em sabatinas, procede-se a uma espécie de certificação, por mais crítica que seja, da idiotia.

Não estou aqui a sustentar que somos nós, da imprensa, a tornar viável a sua candidatura. Mas estou, sim, a dizer que essa viabilidade não poderia contar, de modo nenhum, com a nossa colaboração, ainda que vazada em tom crítico.

"Ah, Reinaldo, mas aí a imprensa deixaria de cumprir a sua função..."

Bem, queridos, estou a escrever um texto num tempo muito especial. Acredito que é chegada a hora de nós todos, diante daqueles que se organizam para destruir a democracia, repensarmos nosso papel. Trata-se, obviamente, de uma tese polêmica.

Penso num trecho de "O Homem Sem Qualidades", espetacular romance de Robert Musil. Num dado momento de sua obra monumental — na qualidade e na quantidade — , há uma reflexão sobre o surgimento de uma "nova era".

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Escreve:
"Pessoas antigamente ignoradas tornavam-se famosas. O grosseiro se suavizava (...). As fronteiras nítidas se borravam, e uma nova capacidade indescritível de se agrupar produziu novas pessoas e novas concepções. (...)Havia apenas um pouco de ruindade demais misturada ao que era bom; engano demais na verdade; flexibilidade demais nos significados. (...) Falta ao mesmo tempo tudo e nada; é como se o ar, ou sangue, tivesse mudado; uma doença misteriosa devorou a pequena genialidade dos velhos tempos, mas tudo cintila de novidade".

A apreensão de Musil é cultural e existencial. E alguém poderia afirmar, desconhecendo o livro, que o trecho mal disfarça o velho sestro do saudosismo: "Houve um tempo bom em que..." Musil não estava nessa nem eu.

Minha questão é bastante objetiva: valores fundamentais do regime democrático, que supõe direitos individuais e liberdades públicas, que nos legou o pós-guerra, estão sob ataque de forças diruptivas de extrema-direita. Os fascistoides saíram das catacumbas sem nenhum receio de reavivar o ódio, a discriminação e a violência, derrotados há quase 80 anos ao custo de milhões de vidas.

Será que apelo a um padrão elevado demais diante de um tão reles Marçal? Não mesmo. Esse cara, obviamente, não está na raiz do mal — e é pouco provável que cheguemos à ela. Mas é fato que ele reúne, em si, todos os sintomas do ódio à democracia, que sempre espreitou, cheio de rancor, o avanço civilizatório. E o tal também serve como uma espécie de alerta para as nossas fragilidades quando se trata de proteger o sistema da virulência extremista.

Sei bem que muitos hão de estrilar com o que vai, mas paciência: o sr. Marçal não tem de ser contestado. Não raro, as coisas que diz são incontestáveis porque nem erradas conseguem ser, dada a estupidez. Por isso, a cada vez que é admitido num debate ou que concede uma entrevista à imprensa profissional, o único a ganhar é ele próprio — e, pois, a barbárie, que passa a ser normalizada, rotineirizada, suavizada.

Ou com Musil: passa a haver "ruindade demais misturada ao que era bom; engano demais na verdade; flexibilidade demais nos significados.".

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Reflitam ao menos.

Ah, sim: como diz um amigo, não se trata apenas de banir do espaço da normalidade um arrivista ou um esquisitão. O sr. Pablo Marçal nem se ocupa de, indignado, negar os vínculos de seus amigos e de gente de seu partido com o PCC. Também isso passa a ser algo meramente constatável, como se dissessem, citando Musil de novo, "hoje é segunda-feira".

Dia desses, valentes colunistas avaliadores de seu desempenho lhe deram nota 3, numa escala de 1 a 5, mesmo admitindo que ele não soube responder à suspeita de vínculo com o crime organizado. Com mais algumas pantomimas, quem sabe essas pressurosas inteligências críticas lhe deem uma nota 4... E poderá chegar a 5 se conseguir traduzir a leitura que Marcola tem de Nietzsche. Sim, gente! Marcola lê Nietzsche.

Marçal e seus entusiasmados críticos certamente não.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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