Americanos fazem contra os EUA o que inimigos não fizeram: o colapso Trump
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Nesta quarta, o presidente dos EUA, Donald Trump, reafirmou a sua intenção de promover uma limpeza étnica na Faixa de Gaza para transformá-la numa "Riviera do Oriente Médio". Depois recuou. Em vez de palestinos por ali, a reivindicar o direito à autodeterminação, milionários se deliciariam com o Mediterrâneo a lamber as praias. E os palestinos? Segundo afirmou na terça, ao lado do criminoso de guerra Benyamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, seriam distribuídos por aí. Exceção feita a Netanyahu — e, muito provavelmente, a Javier Milei, por ora em silêncio —, ninguém aderiu a seu delírio. É possível que nem o delinquente Nayib Bukele o seguisse nessa. O pai do presidente de El Salvador — que ofereceu seu país para ser uma prisão a serviço dos americanos — tem origem palestina.
Dada a perplexidade geral, o secretário de Estado, Marco Rubio, sugeriu que Trump estava apenas propondo limpar Gaza para reconstruí-la. A declaração foi dada durante viagem a Guatemala. Steve Witkoff, enviado especial para o Oriente Médio, afirmou a senadores republicanos que Trump não quer mandar tropas para Gaza, embora tenha, sim, aventado essa possibilidade na terça. A secretária de Imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, garantiu que "o presidente não se comprometeu a colocar tropas em Gaza".

TRUMP E HIPÓTESES PARA A SANDICE
É tão absolutamente espantoso que um governante anuncie que vai tomar um território em outro continente, uma área de guerra em que morreram mais de 40 mil pessoas, para esvaziá-la, transformando-a num polo turístico, que a primeira reação é a estupefação. Demora algum tempo até que se possa articular uma resposta. Mas por que ele o fez? Qual a intenção? Aaron Blake, do The Washington Post, lista hipóteses: 1) diversionismo; 2) manobra para negociar; 3) fingir-se de louco para obter alguma vantagem; 4) realmente acreditar no que diz.
Qualquer dessas alternativas é perturbadora. A impressão que começa a se generalizar mundo afora é a de que o presidente dos EUA não está muito bem da cabeça — não me parece que tenha estado algum dia completamente no controle de si mesmo — e, para arremate dos males, anda cercado de outros arruaceiros, a exemplo de Elon Musk, que fazem coisas estranhas. Os analistas são tentados, e eu mesmo sou assim, a ver método na sandice. Será? Por mais que se tente emprestar alguma racionalidade, ainda que de exceção, a esses 16 dias de governo, é impossível estabelecer um padrão.
"Ah, é tigre de papel; fala muito e não faz nada." No embate tarifário, houve recuos, em princípio temporários, em relação ao México e ao Canadá. No caso da China, a imposição de restrições foi menor do que se anunciava, já respondida pelos adversários. O que ninguém consegue explicar — e não há leitura mesmo inconvencional que o faça — é a sua determinação de atingir primeiro os aliados. Há uma unanimidade entre analistas progressistas e conservadores: o presidente dos EUA está estremecendo a aliança dos países ocidentais, o que inclui aliados em todo o mundo, e fortalecendo a China. Pergunta óbvia de resposta idem: por que os que agora estão sendo intimidados ficariam à mercê de suas vontades num mundo multipolar?
A ideia infantil que Trump vendeu em sua campanha eleitoral e que reiterou em seu discurso de posse, segundo a qual, em vez de taxar americanos para enriquecer os outros países, vai taxar os outros países para enriquecer os americanos, é o quê? Uma teoria econômica? Não. Uma teoria geopolítica? Não. Uma teoria de economia política? Também não. Então é o quê? Só uma besteira.
Sim, Trump adotou teses bisonhas que embalavam os grotões republicanos, como demonstra Julian E. Zellzer na revista "Foreign Policy", em artigo intitulado "Trump's Not a Renegade - He's a Loyal Republican Fighter". Ou: "Trump não é um renegado; ele é um real militante republicano". Em muitos aspectos, é mesmo: a obsessão pelo petróleo; os valores conservadores sobre família e religião, ainda que os tenha tomado apenas de empréstimo; o discurso localista, isolacionista e anticosmopolita... Tudo isso satisfaz as alas mais reacionárias do partido. Mesmo a sua conversa sobre tarifas alimenta a xenofobia dos rincões do atraso.
Mas e todo o resto que se esboça nestes dias, ainda pior do que o seu discurso de campanha? Tomada à força da Groenlândia e do Canal do Panamá; a expulsão dos palestinos de Gaza e a posse do território; a determinação com que avança sobre aliados... Uma das hipóteses de Blake é que tudo isso é um jogo diversionista. Digamos que sim. Mas aí cumpre perguntar, como faria o poeta Ascenso Ferreira: "Para quê?"
Se chegássemos à conclusão de que é "para nada", a hipótese do simples diversionismo seria a menos provável. Afinal, trata-se do homem que está na ponta da maior máquina de guerra do mundo. E as mínimas coisas que faz nunca são irrelevantes. Os preços se movem mundo afora em razão do seu delírio. De inequívoco, temos a caça aos imigrantes, o perdão que concedeu a criminosos que invadiram o Capitólio, estimulados por ele mesmo, e um norte moral: "Se você estiver descontente com algum governo que não açule seus ódios, vá lá a faça você mesmo o que pensa ser certo".
A quarta hipótese de Blake é aterradora: Trump realmente acreditaria nas coisas que diz e vai procurar pôr em prática seus juízos muito particulares acerca do mundo. E essa hipótese pode se juntar com a terceira: a teoria do louco. "E a terceira, que consiste em pressionar para negociar?" Negociar o quê?
URSULA VON DER LEYEN E COLAPSO DA ORDEM
Não dá para fingir normalidade quando o presidente dos EUA, ao lado do primeiro-ministro de Israel, Benyamin Netanyahu -- que promoveu uma carnificina em Gaza --, anuncia que vão expropriar de seus direitos uma população de quase dois milhões de pessoas, que seriam realocadas na marra porque, ele assegura, isso será bom para as vítimas. Reitere-se: aquele que tem o comando da maior máquina de matar da Terra declara, como quem diz "hoje é terça-feira", que pretende redesenhar o mapa do Oriente Médio, somando a tal disposição uma proposta de fundo, vamos dizer, turístico... Seja por atos, seja apenas por palavras, as iniciativas de Trump redundam em desordem.
"Vivemos num mundo em que não podemos mais considerar muita coisa como garantida - nem mesmo as regras e as normas elaboradas ao longo dos últimos 70 anos. Um mundo no qual as grandes potências tentam obter qualquer vantagem possível usando qualquer ferramenta que funcione melhor, seja ela econômica, tecnológica ou de segurança. Um mundo no qual assistimos hoje a uma tentativa concertada de construir esferas de influência — e mesmo de se apropriar de territórios — exatamente como no século 19 ou no auge da Guerra Fria. Um mundo no qual novas potências autoritárias estão se unindo a uma Rússia vilã, pronta a explorar qualquer divisão ou fraqueza nas alianças existentes. Um mundo no qual potências emergentes se desiludiram com a maneira como o sistema internacional funciona e estão cada vez mais buscando alternativas. Na maioria dos casos, elas estarão prontas a trabalhar com quem colocar a melhor oferta na mesa".
A fala acima é de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia, em discurso na terça aos embaixadores dos países-membros, em Bruxelas. Ele reflete um mundo em perigo. A Rússia é o alvo explícito, mas o citado e não explicitado são os EUA de Donald Trump. Cumpre lembrar: a União Europeia e o Reino Unido estão entre os alvos do potencial criador de resorts em Gaza...
O mundo e os organismos multilaterais estão talhados para que os EUA exerçam a liderança do Ocidente, na defesa dos valores que fizeram a globalização e que sustentaram a "pax" pós-Segunda Guerra e pós-desmoronamento da União Soviética e de seus satélites socialistas. Ocorre que Trump representa aquela estranha corrente do pensamento de extrema-direita que vê a globalização como inimiga. Afinal, o "globalismo vicioso" teria destruído a "cultura tradicional", seja lá o que isso signifique. E esses bravos têm a oferecer o quê? Nada.
Nesse cenário, os seres monstruosos, as quimeras, são as "big techs", que só existem porque as conexões fizeram do Globo uma aldeia. Agora os feiticeiros — os Elons Musks e Zuckerbergs — pretendem ministrar rituais que transformam a democracia e seus valores em supostas imposições da esquerda autoritária. Seu divertimento e seu prazer estão num mundo sem regras, mas no qual eles sempre vencem. Porque essa tem de ser "a" regra.
A distopia já chegou. Como sairemos dela? Hora de tirar da estante, a título de ilustração, "1984", "Admirável Mundo Novo", "Fahrenheit 451", "O Zero e o Infinito"...
Na vida real, Trump convida o mundo a se distanciar dos EUA. Nem os inimigos mais ferozes desse país encomendariam um inquilino para a Casa Branca tão a seu gosto. Sozinhos, os adversários não conseguiriam operar esse prodígio. Precisavam da ajuda do eleitor americano e das "big techs".
É esperar para ver. Na hipótese de que venhamos a ver qualquer coisa...
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