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"Agora eles terão os mesmos direitos de outros filhos", diz casal gay que ganhou direito de adotar crianças

A psicóloga Luciana Reis Maidana, 36, (esq.) e a fisioterapeuta Lídia Brignol Guterres, 44 - Cristiano Lameira/Agência RSB/AE
A psicóloga Luciana Reis Maidana, 36, (esq.) e a fisioterapeuta Lídia Brignol Guterres, 44 Imagem: Cristiano Lameira/Agência RSB/AE

Alexandre de Santi<br>Especial para o UOL Notícias

Em Porto Alegre

28/04/2010 20h26

Lídia Guterres e Luciana Reis Maidana têm um compromisso com o cartório de Bagé, no sul do Rio Grande do Sul, nos próximos dias. Juntas, como as mães adotivas legalmente reconhecidas de dois meninos de 7 e 6 anos, vão acrescentar o sobrenome de Lídia nos documentos de identidade dos garotos.

Embora aparentemente prosaica, a burocracia esconde uma vitória histórica para casais homossexuais de todo o Brasil. As crianças foram adotadas desde o nascimento, há cerca de sete anos, por Luciana, uma psicóloga de 35 anos. Na época, Luciana e Lídia já viviam como um casal (estão juntas há 12 anos), e os filhos adotivos foram criados pelas duas mulheres, sob o mesmo teto.

A criança mais velha foi adotada com 19 dias de vida. O mais novo saiu direto da maternidade para a casa da família. Mas, como a legislação brasileira não dá direitos plenos a casais de pessoas do mesmo sexo, os dois garotos eram apenas filhos de Luciana aos olhos da lei. A situação causava certa insegurança para a família. Se algo acontecesse com Lídia, os garotos não teriam direito a sua herança e benefícios sociais.

Ontem, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito de Lídia, fisioterapeuta e professora universitária de 44 anos, adotar as mesmas crianças. Não é a primeira vez que um casal gay ganha a guarda de filhos adotivos em conjunto na Justiça, mas foi a primeira vez que um tribunal superior brasileiro reconheceu esse direito, uma decisão que tem força para abrir precedente para que todos os casais em situações semelhantes regularizem a adoção de filhos adotivos. Nos demais casos, o Ministério Público não recorreu das decisões de primeira e segunda instância e, por isso, estes pedidos não chegaram ao STJ.

Após mais de quatro anos de espera – o processo começou no final de 2005 –, Lídia e Luciana esperam continuar com a pacata vida no interior gaúcho. Durante o período, o casal manteve a batalha sob sigilo, mas, desde ontem, atendem a imprensa de todo o Brasil para dar detalhes do caso – que ainda pode ser contestado no Supremo Tribunal Federal (STF), mas o Ministério Público ainda não se pronunciou se pretende recorrer da decisão.

Lídia e Luciana atenderam o UOL Notícias por telefone, e falaram sobre o sonho realizado de garantir direitos plenos aos filhos.

Como vocês receberam a notícia da vitória no STJ?
Luciana
- Com alegria, porque agora temos segurança jurídica para os nossos filhos. Se algo acontecer comigo, dá o direito para ela [Lídia] de permanecer com eles. Porque, afinal de contas, eles foram criados por duas mães.

A ação era um desejo pessoal da Lídia? Ou vocês tinham esse objetivo como casal?
Luciana
- Na verdade, eles já haviam sido adotados pelas duas. Mas, com a lei não permitia, tivemos que fazer a adoção no nome de uma só. Nós passamos juntas pelo processo todo de adoção, como companheiras.
Vocês tinham o objetivo de ganhar a ação para conquistar um direito para todos os casais que vivem a mesma situação que vocês? Ou era um objetivo somente particular?
Luciana - Não. Era uma coisa para eles. Queríamos garantir a seguridade deles. Mas, graças a Deus, abriu uma porta para as outras pessoas que têm essa vontade, mas que talvez não tivessem a coragem.

Alguma organização não-governamental ou alguma entidade ligada aos direitos dos homossexuais vinham acompanhando a ação junto com vocês? Algum representante desses grupos ligou para parabenizá-las?
Luciana
- Não. Só nossos amigos particulares e nossos familiares. Organizações desse tipo, nenhuma. Em absoluto. Nós procuramos nos manter meio que no anonimato para não expô-los, para não criar situações constrangedoras nem para eles nem para nós. O preconceito ainda existe, né? Ainda existe.

Você acha que muda algo na vida dos seus filhos agora que eles têm dois pais oficializados?
Luciana
- Pais, não. Mães (risos). O fato de eles morarem com duas mães e chamarem duas mulheres de mães, mas ter o sobrenome só de uma. Isso até eles nos cobravam. Eles assinavam os nomes e colocavam Guterres (sobrenome de Lídia, que ganhou o direito à adoção na ação julgada pelo STJ ontem) no fim. E daí a gente dizia: "Não, não tem Guterres ainda, meu filho". Ele respondia: "Mas por que, mamãe, se a mamãe Lídia também é minha mamãe?". Foi isso que nos levou a entrar com a ação.

O relator do processo no STJ, o ministro Luis Felipe Salomão, disse no seu voto que "os laços afetivos entre as crianças e as mulheres são incontroversos", como forma de ressaltar o vínculo familiar. Mas, de alguma forma, você acredita que seus filhos estão crescendo de um jeito diferente de que outras crianças por terem duas mães?
Luciana
- Não. É uma situação totalmente normal. Somos uma família com duas mamães. Para eles, não tem papai. Todos nos amamos, brincamos, fazemos os temas juntos, almoçamos juntos, jantamos juntos, saímos para a praça juntos. E eles são extremamente carinhosos conosco. Nunca sofreram nenhum tipo de preconceito. Agora, não sei como vai ser. Mas, até então, nunca.

Eles perguntaram alguma vez por que não têm pai?
Luciana
- Não. Isso é curioso até. Eles sabem que não têm pai porque sabem que são adotados, que têm pais biológicos. Para eles, essa situação é muito normal porque eles estão conosco desde que nasceram. E eles não estranham que os primos e os coleguinhas têm papai, até porque os coleguinhas nunca estranharam também. Nós vivemos uma vida extremamente normal.

(Luciana passa o telefone para Lídia)

Você se sente mais mãe do que antes?
Lídia
- No sentido materno, não. Juridicalmente, sim. Mas nunca me senti menos mãe porque não tinha eles no meu nome. Eu era mãe mesmo.

A falta de reconhecimento legal das duas mães provocava algum receio específico sobre o futuro deles?
Lídia
- Sim, por exemplo: se eu morresse. Meus bens iriam para outros membros da família e não para os meus filhos. Eles também não teriam direito à pensão, plano de saúde, seguros sociais. Eles não teriam direito a nada disso caso não pudessem ser registrados como meus filhos. Agora, terão os mesmos direitos de outros filhos.

Vocês comemoraram a decisão com festa?
Lídia
- Com a família, ainda não. Não tivemos tempo, talvez no final de semana, quando não estaremos no meio da semana, com trabalho. Mas muitos amigos, familiares e até pessoas que não conhecemos nos ligam, nos parabenizam, passam por aqui. As pessoas que sabiam da nossa espera estão nos parabenizando.