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Ações de combate ao crack no Rio são insuficientes, dizem especialistas

Operação em novembro de 2011 apreende armas e pedras de crack em favela na zona norte do Rio - Jadson Marques/AE
Operação em novembro de 2011 apreende armas e pedras de crack em favela na zona norte do Rio Imagem: Jadson Marques/AE

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio de Janeiro

26/01/2012 06h00

O crescimento do comércio de crack no Rio de Janeiro e a proliferação das chamadas cracolândias, espaços ocupados praticamente 24 horas por viciados (popularmente chamados de “cracudos” ou “zumbis”), levaram o poder público a realizar desde março do ano passado mais de 60 operações a fim de retirar usuários da droga desses locais. Porém, segundo especialistas ouvidos pelo UOL, o modelo adotado para combater o consumo de crack no Rio é “insuficiente”.

Na terceira reportagem do especial sobre a epidemia do crack na cidade -- o UOL mostrou nesta semana que os traficantes do Rio têm lucro com a venda da droga, e utilizam a imagem de jogadores de futebol para impulsionar o comércio--, os psiquiatras Jorge Jaber e Jairo Werner afirmam que “a demanda é maior do que a oferta de tratamento oferecida pelo poder público”.

“Essas ações não são suficientes para resolver ou minimizar o problema. São passos importantes porque dão início a uma atividade de prevenção e tratamento, mas não conseguem atingir um número suficiente de cidadãos. O modelo de enfrentamento do crack no Rio precisa ser melhorado com mais práticas médicas, mais modernas, a exemplo do que foi feito em Nova York, por exemplo”, afirma Jaber.


“Nós não temos um modelo que seja adequado. O que está sendo feito é o necessário, e não o suficiente, tendo em vista o caos que a coisa estava se tornando. O poder público e a sociedade estão chegando a um consenso de que o problema do crack é inadmissível para uma cidade que tem uma oportunidade única de se organizar melhor”, disse Werner.

Segundo Jaber, que é especialista em dependência química pela Universidade de Harvard, além da expansão da rede de tratamento, o segundo ponto mais importante de um programa de enfrentamento do crack e de outros narcóticos é a redução da demanda de consumo.

“As operações nas cracolândias são importantes porque ajudam a reduzir a demanda. Se você reduz a demanda, diminui a quantidade de consumo, o número de vezes em que uma pessoa consome o crack, os prejuízos e os problemas ocasionados pelo consumo, a frequência do consumo e, enfim, os problemas relacionados ao uso. Isso está sendo feito. Mas precisamos expandir um poquinho mais.”

Jaber afirma ter rejeitado um convite da prefeitura do Rio para estar à frente da política municipal de combate ao crack, porém diz ter auxiliado na elaboração da atual política de combate ao crack.

“Auxiliei na montagem da atual estrutura de atendimento, visitei todos os albergues e constatei quais os locais que estavam aptos a receber essas crianças. Mas não tenho experiência em atividade política, então não teria como juntar com a minha profissão, já que isso envolveria políticas partidária e de governo”, explicou o especialista.

De acordo com Werner, membro do Conselho Estadual de Políticas Álcool e Drogas, “muita coisa já estava atrasada, e ainda é preciso fazer uma articulação com outros programas”. O professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) defende uma maior integração entre as áreas da medicina, da segurança pública, da assistência social, entre outras, já que a epidemia do crack no Rio e no país constitui um “problema complexo e intersetorial”.

“Falta essa rede, essa articulação de ações dentro de um conjunto. Os trabalhos de assistência social precisam ser integrados com a área de saúde e de segurança pública, pois o problema é complexo e intersetorial. Envolve questões sociais, médicas, educacionais e outras. Não dá para isolar como se fosse só um problema da saúde ou da assistência social”, opinou.

Já a ex-chefe de Polícia Civil do Rio, Marina Maggessi, entende que o combate ao crack deve incluir não só a questão da construção de novas clínicas de recuperação, mas também a legitimação da internação compulsória para adultos -- no Rio, os menores cujo vício é constatado por meio de avaliação médica podem receber tratamento compulsório desde maio do ano passado.

“Eles não têm mais ideia do que estão fazendo, perderam todas as referências. Mas não se pode criar simplesmente um depósito de viciados, pois isso piora a situação. Realmente, a prefeitura tem que desenvolver um acompanhamento muito sério. Ainda estão tratando o crack como se fosse cocaína”, disse Maggessi.
 


Ocupação das cracolândias

No Rio, a situação do crack é tão crítica que o governo do Estado planeja instalar bases semelhantes ao modelo das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) nas regiões que concentram viciados em crack vivendo cotidianamente em condições impróprias, maltrapilhos e sob o efeito do entorpecente praticamente 24 horas por dia.

Tal realidade dá margem a cenários propícios a assaltos, roubos a transeuntes e homicídios, entre outros crimes. Em 2010, foram registrados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) mais de mil delitos relacionados ao crack.

Desses mil delitos, foram 139 autos de resistência (13%) e 81 tentativas de homicídio (7,6%), de acordo com o pesquisador Emmanuel Rapizo Caldas, autor da pesquisa “Análise das apreensões de crack no Rio de Janeiro”.

O projeto será custeado por meio do programa “Crack, Vencer é Possível”, anunciado há cerca de duas semanas pelo governo federal. A União vai investir mais de R$ 4 bilhões nos próximos dois anos em ações contra o crack em todo o país, que serão estruturadas em três eixos: prevenção, atenção e repressão. O Rio será o primeiro Estado a receber o dinheiro.

Na visão da presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead), Analice Gigliotti, a ocupação permanente das cracolândias pode ser uma alternativa interessante no processo de combate ao crack, desde que os viciados retirados dessas áreas sejam encaminhados para centros de recuperação.

“A ocupação é um caminho. Na medida em que você ocupa, isso permite que as pessoas que vivem nessas áreas sejam identificadas, cadastradas e encaminhadas para locais adequados. A maior parte dos indivíduos que vive nessas cracolândias precisa ser internada”, disse.

Gigliotti, assim como os psiquiatras Jorge Jaber e Jairo Werner, também afirma que o Rio tem poucas clínicas especializadas em comparação com o número crescente de pessoas que se viciam no crack.

“Infelizmente, não temos clínica de internação em número suficiente para atender a demanda. Eu diria que estamos medianamente preparados para enfrentar esse problema. O poder público precisa construir mais clínicas para poder receber todos os que necessitam de ajuda médica”, disse.

Investimento

Atualmente, a prefeitura do Rio mantém cinco abrigos especializados no tratamento de usuários de drogas em toda a cidade, dos quais apenas um é exclusivo para menores de 8 a 14 anos. Trata-se do centro de recuperação Casa Viva, situado em Botafogo, na zuna sul.

Três abrigos estão instalados na zona oeste, sedo dois femininos e um masculino. Já o centro do Rio possui um único centro de recuperação, que atende apenas mulheres. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social (Smas), os cinco espaços oferecem, no total, 178 vagas. O número só é considerado suficiente em razão da alta rotatividade.

A prefeitura estima que apenas 30% dos dependentes químicos retirados das ruas permanecem nos abrigos e seguem o tratamento oferecido, que foi elaborado de forma multidisciplinar. Além da fase de desintoxicação e acompanhamento psicológico, os pacientes também têm aulas de educação física, atividades artísticas, entre outros.

Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social (Smas), com a verba do programa “Crack, Vencer é Possível”, o governo municipal pretende abrir novas vagas nos centros de recuperação já existentes e reforçar as 14 equipes que atuam nas cracolândias, das quais uma por região.

Desde 2008, a prefeitura não cria novas equipes -- estas são formadas por assistentes sociais, profissionais de saúde e psicólogos.

Há mais de um ano, a Smas vem realizando com frequência operações conjuntas para reprimir a proliferação das cracolândias e oferecer ajuda especializada aos usuários que perambulam por tais áreas. Entre março e dezembro de 2011, os agentes da secretaria recolheram mais de 3.000 usuários de crack, dos quais 2.580 adultos e 475 menores.

“Desde março do ano passado, realizamos 67 operações conjuntas em cracolândias da cidade do Rio de Janeiro. Esse é um trabalho de insistência e que engloba diversos setores das políticas públicas. Continuaremos com essas ações, sempre com o objetivo de salvar vidas”, afirmou o secretário de Assistência Social, Rodrigo Bethlem.

Internação compulsória

A internação compulsória de menores viciados em crack é considerada o principal trunfo do governo do Rio na luta contra a epidemia da droga. A partir da determinação, colocada em prática em maio do ano passado, os jovens só são liberados em caso de alta da equipe médica -- ou se a família provar que tem condições de oferecer a ele tratamento contra o vício.

Das 475 crianças e adolescentes que foram retirados das cracolândias no ano passado, cerca de 118 permanecem nos centros de recuperação em regime de internação compulsória.

A medida só se tornou possível a partir de uma nova interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente. “Uma vez que o consumo de drogas pode ser fatal, os órgãos públicos têm o dever de oferecer auxílio para os jovens que sejam dependentes químicos”, argumentou o Ministério Público na época da aprovação do projeto.

De acordo com Analice Gigliotti, o tratamento obrigatório por si só não garante resultados positivos, pois é fundamental que os jovens viciados em crack estejam em um “ambiente resocializador”.

“Eu sou favorável contanto que eles estejam em um ambiente ressocializador, já que não adianta trancafiar esses menores e não dar nada em troca. Se isso não for feito, eles vão continuar usando crack. O poder público precisa desempenhar um trabalho de assistência social muito intenso para que eles não voltem para a rua ao fim do tratamento.”

“Se o menor não consegue uma ocupação, acaba naturalmente sendo atraído pela droga”, afirma a presidente da Abead.

O psiquiatra Jairo Werner também afirma que a internação compulsória não pode ser tida como “a solução do problema em si”, e sim uma iniciativa interessante para que se inicie um trabalho adequado. O especialista destaca que, no Rio, as opiniões sobre a internação compulsória estão muito polarizadas, o que prejudica o debate.

“A internação é necessária na maioria dos casos, mas não é suficiente. Aqui no Rio, as pessoas são ou muito autoritárias ou muito permissivas. Não encontramos um meio termo, e dá a impressão de que gente ainda está naquela luta liberais contra conservadores. Temos que chegar a um consenso e enfrentar o problema com mais seriedade. Do contrário, esses indivíduos deixam as clínicas e volta aos mesmos locais, somados a outros que já passaram a viver naquela situação”, disse.

Já a ex-chefe de inteligência da Polícia Civil do Rio, Marina Maggessi, entende que a internação compulsória seja válida também para os adultos. A mesma opinião já foi compartilhada pelo secretário de Assistência Social da capital fluminense, Rodrigo Bethlem. No entanto, para tal, a prefeitura ainda depende de mudanças na legislação.

“Nada vai mudar se não tivermos a internação compulsória para maiores de idades. Que seja pelo menos por três meses. Vamos brigar judicialmente para que isso seja possível”, afirmou Maggessi.

De acordo com a policial, que hoje é deputada federal, os planos de saúde são obrigados a pagar a internação de qualquer pessoa que solicite à Justiça apoio contra o vício. “Basta chegar com um mandado de segurança que o plano é obrigado a pagar. Mas os planos só disponibilizam 15 dias de internação. Ninguém fica bom em 15 dias”, disse Maggessi.