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No RS, adoções sob suspeita envolvem 50 crianças e adolescentes

Teodoro Schlecht Filho teve a filha retirada dele e da ex-mulher em 2007. A menina foi adotada por uma família de Taquara, no interior do Rio Grande do Sul - Flávio Ilha/Eder Content
Teodoro Schlecht Filho teve a filha retirada dele e da ex-mulher em 2007. A menina foi adotada por uma família de Taquara, no interior do Rio Grande do Sul Imagem: Flávio Ilha/Eder Content

Flávio Ilha

Em Rolante e Riozinho (RS)

15/03/2016 07h55

A cidade de Riozinho, no sopé da serra gaúcha, chama a atenção pela origem de sua colonização: majoritariamente alemães, poloneses e eslavos, com seus característicos olhos azuis (ou verdes) e cabelos louros. Também chama a atenção pela quantidade de adoções de crianças supostamente abandonadas ou maltratadas pelos pais em relação ao tamanho da localidade –4.327 habitantes, segundo o Censo do IBGE de 2010.

Nos últimos dez anos, segundo o Ministério Público do Rio Grande do Sul, houve mais de 40 adoções no município –uma para cada 108 habitantes, ou uma a cada três meses. A maioria delas sem sequer passar pelo CNA (Cadastro Nacional de Adoção) e sem observar o prazo médio de um ano para a consolidação do processo.

A estatística despertou o interesse das autoridades para a existência, na cidade, de uma suposta rede de tráfico de crianças direcionada a famílias interessadas em facilitar as vias legais de uma adoção –com dinheiro, se for preciso. A Polícia Civil gaúcha investiga 20 desses casos envolvendo 11 famílias e um universo de quase 50 crianças e adolescentes –a maioria meninas. A delegada responsável pelo caso, Elisângela Melo Reghelin, trata o assunto com cautela, mas ao mesmo tempo reconhece que a dinâmica dos processos é “bastante peculiar”.

“Todas as mães que já ouvimos se queixam da mesma coisa: tiveram suas crianças retiradas sem autorização, sem direito à defesa e com justificativas insuficientes por parte dos técnicos da prefeitura", relata. Também há denúncia formal de corrupção, ou seja, pagamento pela obtenção de benefício. "Mas a investigação está apenas no começo, não podemos afirmar nada ainda”, ressalva a policial.

A investigação teve início em janeiro, depois que as denúncias ganharam corpo e as famílias –todas de agricultores de baixa renda e com pouca ou nenhuma escolaridade– decidiram reclamar seus direitos. A advogada Mara Sarquiz, que representa algumas mães no inquérito, diz que as famílias nunca prestaram queixa devido à pressão exercida pelas autoridades municipais. “A cidade é pequena e todos se conhecem. O medo de represálias é grande”, justifica a defensora.

É o caso do agricultor Teodoro Schlecth Filho. Antigo morador da localidade de Sampaio Ribeiro, distante mais de 15 quilômetros da área urbana de Riozinho, o colono e a mulher Tatiane perderam duas filhas porque supostamente o pai tinha problemas com bebidas alcoólicas, batia na mulher e abusava sexualmente da criança mais velha, de apenas um ano e três meses. Supostamente, uma vez que as agressões nunca foram comprovadas. O agricultor nunca prestou depoimento à polícia, nunca foi preso e sequer teve sua versão considerada pela Justiça. Mesmo assim, perdeu as filhas.

“Foi tudo muito rápido. Como minha ex-mulher tinha depressão, trataram de interná-la e me acusaram de violência doméstica, o que me impediria de cuidar da menina. Nunca soube de onde partiu a denúncia, só sei que me rebaixaram o quanto puderam, me caluniaram e em menos de dois meses destruíram minha família”, narra o agricultor, que hoje mora em Rolante –a pouco mais de 30 quilômetros de Riozinho.

O caso ocorreu em 2007, quando o casal tinha apenas uma filha. Entre as acusações que pesavam contra Teodoro, estava a de que colocava a criança para comer com os cachorros da casa, no pátio, e que abusava sexualmente da menina e da mãe dela. Também acusaram o agricultor de manter a mulher amarrada em casa, sem acesso a higiene ou alimentação. Além disso, a denúncia sustentava que a família não tinha condições econômicas de cuidar da filha, embora morassem em casa própria, tivessem emprego fixo e renda mensal regular.

O pai respondeu a cinco processos judiciais, foi absolvido em todos e levou o caso até o STJ (Superior Tribunal de Justiça) –sem sucesso. E, mesmo diante das circunstâncias negativas que envolviam Teodoro e Tatiane, o casal ainda foi incentivado a retomar a relação conjugal após a destituição da primeira menina. Tiveram outra filha em 2011, que foi retirada novamente por decisão do Conselho Tutelar, em regime de plantão, e levada para adoção ainda no hospital, com três dias de vida. A decisão do Conselho foi tomada 40 minutos depois que o hospital solicitou um parecer sobre o caso.

A suspeita da polícia é que as adoções de Riozinho sejam forjadas por um grupo criminoso que atua na administração pública do município, incluindo o próprio Conselho Tutelar. Além de beneficiar amigos e conhecidos com um processo de adoção rápido e direcionado para as características físicas das crianças, em alguns casos haveria pagamento em troca de vantagens. A maioria das crianças ficou na região, mas há a possibilidade de que algumas delas tenham sido transferidas para famílias no exterior.         

O relato da psicóloga da Prefeitura de Riozinho, Venilce Santos de Oliveira, foi decisivo para a abertura do inquérito policial que investiga os casos suspeitos. Segundo a profissional, que está em licença de suas funções e teve que deixar a cidade devido às ameaças que recebeu, o método de destituição das crianças seguia um mesmo padrão: primeiro as famílias eram denunciadas no Disque 100 por maus tratos ou abandono, denúncia anônima feita pelos próprios integrantes do bando; depois, o Conselho Tutelar investigava e confirmava as informações; como desfecho, a Justiça concedia, em tempo recorde e sem apuração policial, a perda do pátrio poder.

“A retirada da criança e a perda da guarda, que deveria ser a última alternativa no processo, em Riozinho era a primeira. Os pais que queriam manter seus filhos logo eram desabonados publicamente, para perder essa condição e facilitar a execução”, relata a psicóloga. Segundo ela, em um dos episódios uma família perdeu os sete filhos para que apenas dois deles, entre um e três anos de idade, fossem adotados.  “É um método que permite furar a fila (de adoção) e escolher o perfil da criança, a cor dos olhos, a idade. E os adotantes pagam por essas vantagens. Em tese, as crianças são compradas”, denuncia a psicóloga.

A principal acusada é a assistente social do município, Ariadne Wagner. Mas as denúncias também atingem o ex-presidente do Conselho Tutelar de Riozinho Luís Alberto Fleck. Segundo as informações repassadas à polícia, Ariadne é quem fazia a triagem dos casais que eram alvo de pressão para que perdessem seus filhos. Fleck, por sua vez, garantia as decisões favoráveis junto ao Conselho, cujos membros foram indicados pelo prefeito –e não eleitos, como determina a legislação. 

Por telefone, a assistente social Ariadne Wagner negou as acusações e disse que não pode falar sobre os casos devido ao segredo de Justiça. “As acusações são infundadas e os indícios apresentados, inverídicos. Todas as adoções foram feitas dentro da legalidade, com acompanhamento do Ministério Público e autorização judicial”, defende-se. O ex-conselheiro tutelar Luís Alberto Fleck mora atualmente em Recife e não atendeu aos pedidos de entrevista feitos pela reportagem.

O Ministério Público também apura o caso, mas oficialmente não há uma investigação sobre as adoções suspeitas de Riozinho. O promotor Leonardo Giardin de Souza diz que existe a possibilidade de destituições indevidas de pátrio poder e de vantagens aos agentes públicos para que os processos tenham ido adiante. Mas, assim como a polícia, a promotoria adota um tom cauteloso.

“Os fatos, em tese, são gravíssimos. Há uma possibilidade forte de favorecimento, mas precisamos ter certeza antes de indicar qualquer ação concreta”, afirma o promotor. A seccional gaúcha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também investiga as adoções, já que membros do Poder Judiciário podem ter colaborado com a farsa.

A Prefeitura de Riozinho creditou as denúncias à tentativa de “obtenção de ganhos políticos” para as eleições municipais deste ano. O prefeito Airton Trevizani da Rosa (PSB) não quis conversar com a reportagem. Em nota, o Executivo municipal sustenta que houve 11 adoções na cidade entre 2007 e 2015 “por casais que estavam na lista de pessoas habilitadas e que cumpriram todas as exigências legais”.