Região amazônica tem rotas de tráfico humano sem fiscalização
A vulnerabilidade da tríplice divisa, na confluência entre Brasil, Peru e Colômbia, para a fiscalização do tráfico humano realmente impressiona. A ponto de ser chamada de fronteira “viva” ou “aberta”: do porto de Tabatinga (AM) para a localidade peruana de Santa Rosa são apenas quatro minutos em linha reta de “pek-pek” –o motorzinho de popa que tornou os deslocamentos pelos rios Solimões e Amazonas muito mais rápidos e incontroláveis.
Entre Benjamin Constant (AM), no lado brasileiro, e Islândia, no Peru, a distância é ainda menor: cerca de 50 metros pela foz do rio Javari, que podem ser cruzados a remo. Ou dois minutos em barco regular a motor até o centro da vila, por R$ 4. Em ambos os casos, a fiscalização aduaneira não existe. Para cruzar a fronteira com os barcos que saem das estações regulares de Tabatinga e Benjamin Constant, basta informar o primeiro nome. O serviço de transporte não exige documentos e nem faz perguntas sobre o parentesco de quem está viajando. Na divisa de Tabatinga com Letícia, separadas apenas por uma rua, o controle é mais rigoroso, mas apenas na principal rota de passagem entre Brasil e Colômbia –pela avenida da Amizade. Nas ruas adjacentes, o trânsito é livre. E fluente.
“Na fronteira o problema é mais grave, porque as pessoas simplesmente desaparecem, nunca mais são localizadas. E porque as polícias estão empenhadas em combater o tráfico de drogas, que gera visibilidade. Os dois crimes, porém, são absolutamente complementares”, pondera a coordenadora da seccional do Amazonas da rede Um Grito Pela Vida, Izalene Tiene. A rede, ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), atua de forma preventiva e não acompanha denúncias de tráfico, embora Izalene relate pelo menos meia dúzia de ocorrências recentes de raptos em Tabatinga e em cidades vizinhas, como São Paulo de Olivença e Atalaia do Norte. Todas com as mesmas características: adolescentes ou mulheres jovens e vulneráveis, de famílias pobres, e com pais ou irmãos ligados ao tráfico de drogas.
As rotas também são conhecidas, embora continuem sem fiscalização alguma. A mais comum envolve a saída forçada de pessoas pela cidade peruana de Caballococha, a duas horas de lancha da tríplice fronteira; dali, de avião ou de barco, os traficantes seguem até Iquitos –principal cidade da Amazônia peruana– e têm acesso a linhas aéreas comerciais para todo o mundo. Quando chegam até lá, torna-se muito difícil recuperar alguém.
Outro caminho, menos usado devido ao controle mais rígido, é chegar a Manaus pelas rotas comerciais ou alternativas. Mas a viagem dura pelo menos três dias, dependendo do tipo de embarcação, e passa por regiões povoadas, onde o risco de ser descoberto é maior. Chegando àcapital, porém, o trânsito é livre, especialmente para a Guiana e o Suriname –dois destinos muito usados pelos traficantes para exploração sexual.
Segundo a ONU, o tráfico humano rendeu US$ 31,6 bilhões no mundo todo para os comerciantes ilegais em 2015 –sendo a atividade criminosa que mais cresceu em âmbito global. Em comunicado com data de 9 de fevereiro deste ano, o secretário-geral Ban Ki-moon alerta que o tráfico de pessoas já afeta populações de 152 nacionalidades em 124 países.
Segundo o dirigente, é necessária uma cooperação internacional mais significativa e financiamento adequado para que sejam tomadas medidas eficazes contra os traficantes. “Nenhuma região está imune”, disse o secretário-geral da ONU. Dados do Europol (Serviço Europeu de Polícia) apontam que cerca de 10 mil crianças vulneráveis que viajam para a Europa em rotas de migração política desapareceram, lembrou Ban Ki-moon. “Algumas podem estar se escondendo por medo. Mas outras são mantidas na escuridão.”
No Brasil, a SDH (Secretaria dos Direitos Humanos) da Presidência da República estima que o número de vítimas de tráfico de pessoas no país cresce de forma assustadora, mas os dados são mínimos. Foram computados 32 casos em 2011, segundo o serviço Disque 100 –estatística que pulou para 309 notificações apenas dois anos depois (2013). Nos três anos de intervalo do levantamento, o número de vítimas chegou a 511. Proporcionalmente, Mato Grosso e Amazonas lideram as notificações com respectivamente um caso para cada grupo de 21 mil e 25 mil habitantes. São Paulo, que tem o maior número absoluto de casos notificados (51 em 2013), registrou uma ocorrência para cada grupo de 86 mil pessoas.
O governo reconhece que há subnotificação, especialmente em Estados do norte do país. Amapá e Roraima, por exemplo, não registram nenhum caso entre 2011 e 2013 –embora figurem como rota de exploração por organismos internacionais. O diretor do Departamento de Justiça do Ministério da Justiça, Davi Pires, credita a dificuldade com a consolidação das informações à diversidade de órgãos públicos envolvidos no combate ao tráfico de pessoas e à baixa tipificação criminal da legislação brasileira em relação ao tema.
O tráfico de pessoas é condenado como uma violação dos direitos humanos e é regido pelo Protocolo de Palermo (2000) –ratificado pelo Brasil por meio do decreto 5.017. “Apesar de sermos signatários do Protocolo de Palermo desde 2004, a tipificação do crime de tráfico de pessoas existe apenas no plano teórico. Do ponto de vista penal não há objetividade”, argumenta o diretor. Pires reconhece que o problema “é mais sério do que as estatísticas afirmam”, mas alega que o marco legal do país tende a se tornar “mais claro” com a votação de substitutivo do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES). O projeto foi resultado de duas CPIs –uma na Câmara, outra no Senado– sobre o tema. Entre outras medidas, o projeto altera o Código Penal e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para aumentar as penas de quem traficar seres humanos. Também nega visto a estrangeiro que tenha sido condenado em outro país pelo crime. Hoje, a pena máxima para quem pratica tráfico de pessoas é de seis anos de reclusão.
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