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ONG analisa ações anti-crack no Brasil e critica "limpeza" onde usuários se concentram

Aglomeração de barracos na cracolândia, no centro de São Paulo (agosto de 2015) - Zanone Fraissat/Folhapress
Aglomeração de barracos na cracolândia, no centro de São Paulo (agosto de 2015) Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

08/02/2017 04h00

A fundação Open Society, uma ONG internacional voltada para justiça, direitos humanos e liberdade de expressão, publicou na semana passada um relatório em que avalia os resultados de três ações sociais brasileiras voltadas para usuários de crack em situação de rua e as recomenda como referência para outras cidades do mundo. Por outro lado, critica as ações voltadas para a população em situação de rua que busquem a "limpeza" das áreas onde esta se concentra, citando exemplos de diferentes gestões paulistanas e cariocas.

São abordados pela ONG os programas “De Braços Abertos” (São Paulo), “Aproximação” (Rio de Janeiro) e “Atitude” (Pernambuco). Com base em pesquisas feitas sobre eles no Brasil, a fundação afirma que é positivo não exigir abstinência dos usuários de drogas como pré-requisito para participarem de ações públicas de reinserção.

O documento foi apresentado entre os dias 31 de janeiro e 2 de fevereiro de 2017 e sugere a adoção da estratégia conhecida internacionalmente como “Housing First” (moradia primeiro, em tradução literal), no lugar de “Treatment First” (tratamento primeiro). 

Críticas a abordagens repressivas contra drogas

O relatório da Open Society é taxativo ao abordar ações voltadas para a população em situação de rua que busquem a “limpeza” das áreas onde esta se concentra. “Repetindo o fracasso de outros países, essas tentativas localizadas de higienismo social apresentam resultados parciais e pouco duradouros. A principal consequência concreta é que as pessoas em situação de rua simplesmente se mudam de um bairro para outro, enquanto as remoções acumulam críticas sobre o uso excessivo da força e a brutalidade policial”, afirma.

Na parte final do documento, a ONG compara o Brasil aos Estados Unidos, que hoje têm a maior população prisional do mundo e “onde uma pessoa é presa por um crime não violento relacionado a drogas a cada 25 segundos”.

“As sentenças judiciais (no Brasil) por crimes de drogas, um tipo de condenação que não diferencia claramente uso e tráfico, aumentou 123% entre 2007 e 2012 e continua crescendo, com fortes evidências que dezenas de milhares de jovens negros e pobres estão presos por simples posse de substâncias, em uma clara demonstração do racismo institucional e da desigualdade social que retroalimentam a atual política de drogas no país”, diz o texto.

Para a Open Society, as populações em situação de rua que usam drogas estão entre os grupos mais vulneráveis da sociedade, pois vivem na pobreza, em geral com baixos índices de educação, com histórico de passagem pelo sistema prisional e expostas ao julgamento público. “Se encontram encurraladas entre a polícia e o sistema de Justiça criminal, que as veem como uma ameaça à ordem pública, e o crime organizado, que as tratam como mercado e fonte de renda e mão de obra”, diz o relatório.
 
Para a ONG, os exemplos brasileiros deixam lições de “saúde, segurança e cidadania” que podem ser aproveitadas em outros locais. Os exemplos de São Paulo e Pernambuco se encaixam nesta proposta. No Rio, sobressai a abordagem humanitária.
 

Moradia, comida e trabalho em São Paulo

A cracolândia de São Paulo, situada no centro da cidade, é apontada no relatório como “uma das mais trágicas cenas abertas de consumo de drogas do mundo”, com estimativa de 500 residentes e visita regular de cerca de 2.000 pessoas que usam crack.

Em 2013, na administração Fernando Haddad (PT), a prefeitura lançou o programa “De Braços Abertos” (DBA) com a seguinte proposta para os moradores da cracolândia: um quarto de hotel, três refeições por dia e jornada de trabalho de quatro horas diárias, com remuneração de R$ 115 por semana.

“Até junho de 2016, mais de 500 pessoas receberam moradia através da iniciativa, e outras 280 estavam inscritas aguardando a abertura de novas vagas. Em menos de três anos, o DBA se tornou referência internacional e cerca de 20 municípios brasileiros consideram replicar os conceitos e as abordagens do programa”, aponta o relatório.

Como resultados positivos, a ONG ressalta os seguintes números, entre os participantes do programa:

  • 53% retomaram contato com a família
  • pelo menos 65% dos usuários de crack reduziram o consumo da droga
  • 73% ingressaram na frente de empregos oferecida pelo programa
  • 84% conseguiram emitir documentos de identidade

Como pontos negativos, a fundação indica a má avaliação dos alojamentos por 36% dos participantes entrevistados; problemas relacionados à limpeza, manutenção, custeio e segurança dos hotéis; e denúncias de policiais invadindo os hotéis para assediar e humilhar beneficiários do programa.

Esses dados foram obtidos de estudos feitos por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Leipsi), com apoio institucional da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD).

Em Pernambuco, redução de danos ligados ao uso de drogas

Em setembro de 2011, o governo de Pernambuco lançou o programa estadual “Atitude”, na gestão Eduardo Campos (PSB), com foco na promoção de melhores condições de vida para usuários e seus parentes, e não na abstinência. O público-alvo são usuários de crack e outras drogas em situações de alta vulnerabilidade e violência.

De acordo com o relatório da Open Society, são oferecidos serviços móveis de aconselhamento, nas ruas, e abrigo em três modalidades. O centro de acolhimento de curto prazo tem chuveiros, refeições e pensão noturna, disponíveis 24 horas. O centro de acolhimento intensivo, que também funciona o dia todo, tem prazo máximo de permanência de seis meses e é voltado para usuários em risco.

Há ainda a modalidade de aluguel social, com reintegração oferecida a alguns usuários dos abrigos de cuidado intensivo que estejam prontos para trabalhar ou estudar, com moradia subsidiada e acompanhamento com visitas periódicas.

Em 2015, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Política Pública de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (NEPS-UFPE) fez uma avaliação do programa e apontou alguns resultados. Foram analisadas informações de 5.714 pessoas atendidas em quatro municípios.

Ainda que a abstinência não seja pré-condição do programa, com frequência os entrevistados relataram diminuição no consumo de crack. Eles explicaram que a possibilidade de estar nos abrigos impediu o uso compulsivo da droga.

Aqueles que continuaram consumindo crack reportaram uso menos intenso da substância e intervalos mais longos entre episódios de alto consumo. O volume total de uso da droga foi reduzido, bem como caiu a intensidade de uso dos indivíduos que continuaram a consumir a substância, conclui o relatório.

“O caráter inovador do programa foi elogiado especialmente pela opção em reduzir danos no lugar de impor a abstinência. O consenso expressado de várias maneiras pelos participantes mostra a importância dos abrigos e da sensibilidade em trata-los com dignidade, o que possibilitou que retomassem a autoestima e o senso de cidadania”, ressalta a fundação.

Como pontos negativos, a Open Society aponta uma “habilidade limitada em monitorar usuários quando eles deixam o programa e em realizar o acompanhamento de suas famílias”, e também “dificuldades para a geração de empregos estáveis para os participantes nos mercados formal e informal”.

No Rio, segurança vale mais que disponibilidade das drogas

Em 2015, a ONG Redes da Maré, com atuação na favela da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, criou o programa “Aproximação”, voltado para um grupo de 80 pessoas reunido na rua Flávia Farnese para usar drogas. O objetivo era saber quem elas eram e por que estavam naquele lugar, ao mesmo tempo em que se tentava desvencilhar o grupo do termo “cracudo”, usado para descrever de forma pejorativa quem fuma o crack na rua.

A primeira ação foi escutar essas pessoas e estabelecer relações com elas. Após seis meses de entrevistas e convivência com os frequentadores, a ONG constatou que “a facilidade de obter drogas” aparecia somente em quarto lugar entre os motivos citados por eles para ficar ali, enquanto a sensação de segurança e pertencimento e a sociabilização foram indicados como fatores importantes para sua permanência.

“A sensação de segurança é real, apesar do óbvio: a Flávia Farnese é um local violento, com grupos armados, uma força policial militarizada, violência sexual e de gênero, brigas entre vizinhos além de disputas territoriais”, mostra o relatório.

A maioria das pessoas ouvidas ainda mantinha laços familiares e estava no local desde janeiro de 2013, onde percebiam um grau de violência menor e de tranquilidade maior em relação a outras cenas de consumo de drogas.

  • Cerca de 46% disseram já ter passado por alguma forma de tratamento pelo menos uma vez na vida.
  • Destes, metade esteve em comunidades terapêuticas de cunho religioso.
  • O isolamento e a rigidez das regras impostas pelas instituições religiosas foram dois dos obstáculos mais citados à eficácia das terapias oferecidas.

Com frequência, os problemas mais urgentes citados por eles não tinham ligação direta com o uso de drogas, mas com a falta de documentos de identidade, que impede, por exemplo, o acesso a serviços de emergência e cuidado em hospitais, além de inviabilizar oportunidades de capacitação e emprego.

“A Redes da Maré é uma organização reconhecida por seu trabalho em criar um mapa da comunidade que foi aceito pelo município do Rio de Janeiro”, avalia a fundação Open Society. “Antes, a Favela da Maré aparecia como um espaço em branco na cartografia da cidade. O esforço facilitou o acesso da comunidade local a serviços como ambulâncias, correios e eletricidade. Seguindo a mesma linha, com o ‘Aproximação’, a Redes colocou a cena de uso de drogas da Maré e seus residentes no mapa da comunidade.”