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Governo atrasa auxílio e bebê com doença rara corre risco de ter uma convulsão por minuto

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Ana Carolina Silva

Colaboração para o UOL

08/06/2017 04h00

Convulsões desde o terceiro dia de vida e uma dieta de alto custo: essa é a realidade da pequena Lia, de 1 ano e 5 meses, que sofre da síndrome de Ohtahara. Trata-se de um raro tipo de epilepsia que exige o uso de uma fórmula específica em sua alimentação para evitar que ela tenha uma nova convulsão a cada minuto. Graças a uma liminar, a família da criança teve o suplemento fornecido pelo Governo do Estado de São Paulo por dois meses, mas o auxílio está atrasado há mais de 45 dias e não foi entregue em abril e maio. A Secretaria de Saúde justificou o tempo de espera.

"Estão empurrando desde o dia 20 de abril sem fornecimento. Ela só usa essa dieta para se alimentar, uma lata de 300 gramas que custa R$ 291 e dura dois dias. Ou seja, abrimos uma lata a cada dois dias. São mais de 45 dias de atraso, sem previsão de data para retorno", disse o pai de Lia, Fábio, à reportagem do UOL. A família reside em São Caetano do Sul, na grande São Paulo.

A confirmação foi dada pelos funcionários da Unidade Dispensadora Farmácia Tenente Pena, localizada na capital paulista, onde a família foi inicialmente orientada a retirar as latas do suplemento Ketocal (produzido pela Danone no Brasil) em fevereiro e março. "Em abril, eles começaram a alegar falta de verba. Dizem que não chegou, que não tinha data", prosseguiu Fábio.

Após o contato do UOL, a Secretaria de Saúde se prontificou a resolver o atraso. "Houve um desabastecimento temporário em razão do aumento inesperado de demanda, mas o produto já foi comprado e o fornecedor está sendo cobrado para efetuar a entrega com celeridade", disse a pasta comandada pelo secretário Dr. David Everson Uip. O texto garante que um telegrama acaba de ser enviado à família comunicando a disponibilidade do suplemento infantil, de modo que a família de Lia também foi avisada antecipadamente pela reportagem.

Lia sofre da síndrome de Ohtahara, um raro tipo de epilepsia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

A pasta ainda informou que inicia o processo de aquisição de maneira imediata em todos os casos de decisões judiciais, seguindo a Lei Geral de Licitações para a compra de qualquer produto e respeitando os prazos estipulados pela legislação. "Porém, alguns fatores alheios ao planejamento podem prejudicar a agilidade no processo, como o atraso por parte do fornecedor, os pregões 'vazios' (quando nenhuma empresa oferta o medicamento), ou até os pregões 'fracassados' (quando as empresas estabelecem preços acima da média de mercado, o que inviabiliza legalmente a aquisição) ", encerrou a nota.

Entenda a síndrome

Como Lia sofre de disfagia e não é capaz de engolir, sua dieta cetogênica é feita por gastrotomia (ou seja, a colocação de um tubo de alimentação diretamente em seu estômago) e começou aos quatro meses de vida. Se não alimentada desta maneira, pode chegar a ter uma convulsão por minuto. No entanto, a resistência da síndrome ainda é alta e a bebê pode ter de 50 a 100 crises convulsivas por dia mesmo sob o tratamento. O diagnóstico desse raro tipo de epilepsia é feito pelo exame de eletroencefalograma, que avalia as ondas cerebrais que demonstram eventos de surto-depressão.

"Trata-se de uma encefalopatia epiléptica precoce que pode se iniciar na primeira semana de vida ou manifestar-se em torno dos três meses de idade. As crises podem se apresentar de várias formas, como espasmos, movimentos clínicos e crises generalizadas. Podem ser consequências de má formação cerebral e sofrimento cerebral por falta de oxigenação na gestação", explicou o neurologista Abram Topczewski, consultor de neurologia infantil do Hospital Albert Einstein e da AACD.

"Cerca de 50% das crianças portadoras morrem nos primeiros anos de vida. Os outros apresentam sequelas importantes no desenvolvimento neurológico", prosseguiu o especialista, em concordância com o colega neurocirurgião Carlo Petitto. "Este tipo de doença, infelizmente, se expressa com uma criança com grave atraso do desenvolvimento neurológico que se torna completamente dependente dos cuidados dos pais. A sobrevida pode ser curta como causa de inúmeras infecções associadas à necessidade plena de cuidado de outros", disse o médico.

Carlo Petitto é neurocirurgião do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas, onde Lia ficou internada por três meses. "Ela está sendo tratada em um misto de particular e público. Nos recomendaram agora as clínicas de Ribeirão Preto (interior de São Paulo) devido ao centro de pesquisa de epilepsia que existe por lá", comentou Fábio, que agora coloca esperança nos medicamentos à base de canabidiol.

É importante lembrar que em maio deste ano, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu incluir a Cannabis sativa, nome científico da maconha, em sua relação de plantas medicinais. "Temos dias terríveis por vê-la convulsionar tanto, engasgar várias vezes e quase morrer nas nossas mãos por inúmeras vezes. É claro que nosso psicológico fica abalado, mas procuramos viver um dia de cada vez buscando um tratamento adequado sem medir esforços", disse o pai de Lia, dono de uma empresa de pequeno porte e casado com a professora Irene. O casal tem outro filho: o menino Pedro, de seis anos.

Sintomas na gravidez

De acordo com os médicos consultados pela reportagem, as mães de crianças portadoras de síndrome de Ohtahara podem reconhecer sinais epilépticos durante o terceiro trimestre da gestação. "Após a visualização de uma crise, é comum que a mãe se lembre de ter sentido tais fenômenos desde o último trimestre da gestação, sendo então creditado seu início antes mesmo do nascimento", explicou o neurocirurgião Carlo Petitto. Esse foi o caso de Irene.

"Ela teve diabetes gestacional, mas foi controlada sem nenhuma alteração. Nós tínhamos a impressão de soluços do bebê na barriga dela e comentamos com os médicos, mas falavam que era normal. Só cinco meses depois que a Lia nasceu, um médico comentou que havia relatos desse tipo de sintoma", esclareceu a família. A síndrome apresentou suas primeiras convulsões logo no terceiro dia de vida da criança.

Úlcera no primeiro ano de vida

Lia já passou por cirurgia, enfrentou mais de uma parada respiratória e lidou com uma ampla lista de medicamentos: Gardenal, Topiramato, Vigabatrina, Corticoide, Vitamina B6, Clobazam, Trileptal, Amitriptilina e Lacosamida. O problema é que as fortes substâncias geraram uma úlcera que, segundo Fábio, já ocupa 50% do esôfago da criança. "Ela tomava cinco anticonvulsivantes, hoje só dois remédios: Keppra e Nitrazepan", disse.

"Os medicamentos anticonvulsivantes, por vezes, controlam parcialmente as crises. O uso da cortisona também pode ser útil. Os medicamentos são necessários, mas deve-se fazer avaliações periódicas para se evitar e contornar os efeitos adversos dos medicamentos", pontuou o médico Abram Topczewski. Lia também sofre de hipotonia (diminuição da força muscular) e precisa de uma cadeira de rodas adaptada e de fisioterapia, já que o tempo que passa deitada lhe provocou escoliose (deformação da coluna vertebral).