Agentes enfrentam clima de guerra para levar saúde a áreas controladas pelo crime
Profissionais da saúde pública no Brasil correm risco de violência, e até de morte, durante o trabalho em áreas conflagradas ou controladas pelo crime organizado. Esses agentes são muitas vezes constrangidos e impedidos de entrar nas comunidades, sofrem ameaças e não conseguem atender a população adequadamente, comprometendo serviços essenciais para quem deles precisa, como gestantes e crianças. O estado de estresse permanente leva ainda muitos desses trabalhadores a um quadro grave de depressão.
A reportagem do UOL constatou esta situação nos municípios do Rio de Janeiro, de Salvador e de São Paulo, em conversas com profissionais sobretudo da Estratégia Saúde da Família, que atuam no primeiro nível de atenção no SUS (Sistema Único de Saúde), em contato direto com as famílias.
Nomes reais dos agentes de saúde e auxiliares, bem como suas áreas específicas de atuação, foram omitidos por questão de segurança, uma vez que temem represálias tanto de quem os contrata quanto de quem eles atendem. Normalmente eles moram nas mesmas comunidades onde prestam serviço.
"Já aconteceu de ficarmos abrigados na casa de pacientes"
No Rio de Janeiro, os confrontos quase diários nas comunidades impedem o atendimento oferecido principalmente a grávidas, crianças de até 2 anos e idosos. Quem conta é Geraldo*, representante de uma comissão de agentes de comunidade da zona norte do Rio. De acordo com ele, os profissionais já ficaram uma semana sem realizar atendimento devido aos conflitos.
O Rio vive uma escalada de violência desde o dia 17 de setembro, quando se intensificou uma sangrenta disputa pelo controle do tráfico de drogas entre Rogério 157 e Nem da Rocinha. Com isso, por exemplo, mais de 14 mil alunos ficaram sem aula durante uma operação no Complexo da Maré para tentar prender Rogério 157, que continua foragido.
"Muitas vezes nossas visitas são interrompidas. Já aconteceu de termos que ficar abrigados na casa de pacientes, teve agente que já se jogou no chão para tentar ficar seguro em meio a um tiroteio. A gente sai de casa sem saber o que vai encontrar e o paciente, que precisa de ajuda, também não consegue sair para procurar atendimento por questões de segurança. Essas pessoas acabam não tendo com quem contar", afirma Geraldo.
O agente comunitário de saúde Wilson*, que atua em área de risco na zona norte há 14 anos, contou que, em 2016, o automóvel onde estava chegou a ser rendido por traficantes armados, ao sair da casa de uma paciente. "A enfermeira, que estava conosco havia dez anos, pediu transferência de unidade após esse episódio. Ela estava dirigindo. Ficou supernervosa, largou o volante, não tinha mais condições. Foi uma barra."
"A gente adoece emocional e psicologicamente"
Além da falta de atendimento, os agentes destacam também os problemas de saúde que os próprios profissionais acabam desenvolvendo por causa da falta de segurança.
"A gente prega saúde, mas acaba que a gente também adoece. A gente adoece emocional e psicologicamente. É uma rotina estressante. Os confrontos frequentes atrapalham nosso planejamento", diz Fernando*, que trabalha desde a década de 90 em um centro municipal de saúde em comunidade do bairro da Tijuca, na zona norte.
Tendo em vista os problemas enfrentados, Mayalu Matos Silva, pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli e psicóloga mestre em medicina social, avalia que a Estratégia Saúde da Família segue ameaçada.
"Vimos que há uma perda nos direitos básicos dos cidadãos: o direito de ir e vir, o direito à própria vida e à educação, por exemplo. As pessoas não podem sair de casa e muitas vezes os serviços de saúde fecham, além das escolas. Então as visitas domiciliares não podem acontecer, as consultas marcadas não acontecem. Quem está dentro de uma unidade de saúde no momento de um tiroteio não pode sair e quem está fora também não pode entrar."
Mariana Nogueira, pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz, defende a importância do programa para a saúde de famílias que vivem em áreas pobres. "Os agentes são trabalhadores fundamentais para a prevenção de doenças. Esse trabalho é histórico e comprovadamente essencial para a diminuição da mortalidade materno-infantil e para a ampliação das ações de imunização."
"Várias vezes fomos enquadradas por traficantes"
Em Salvador, as histórias se repetem. A técnica em enfermagem Ana*, 37, afirma ter perdido a conta das vezes em que passou apuro realizando pesquisas de porta em porta para um departamento da seção baiana da Fiocruz. De segunda a sexta-feira, entre 2015 e 2017, ela e outra colega de equipe visitavam residências de Pau da Lima e São Marcos, bairros limítrofes situados na periferia de Salvador. O trabalho --feito por equipes divididas em duplas-- consistia na coleta de material para exames e entrevistas com moradores sobre doenças.
"Várias vezes nossas equipes foram enquadradas por traficantes", conta Ana. "Falava-se que eles desconfiavam de que aquilo fazia parte de uma investigação policial. Abordavam a gente com armas, ameaçavam e nos mandavam sair."
"No início foi sinistro. Deu até vontade de desistir. Mas, como estava precisando do dinheiro, tive que continuar", explica Ana, que, apesar do perigo constante, diz ter se adaptado à tarefa. "O tempo passou. Fomos conhecendo todos da comunidade, e aí me acostumei com a situação. Quando o bicho pega, são essas pessoas que acolhem e protegem a nossa integridade."
"Desmaiei com o susto; me carregaram e me botaram em uma casa"
Lúcia*, 40, atua há 15 anos como agente municipal de combate a endemias em Salvador. Nesse período, assegura já ter visto "de tudo um pouco" nas áreas em que sua função era ser porta-voz no enfrentamento de doenças, como dengue, zika e chikungunya.
Enquanto tentava conscientizar moradores acerca da proliferação do Aedes aegypti no bairro de Pernambués, se viu em meio a troca de tiros entre duas gangues rivais. "De repente, houve a invasão de uma gangue que, depois eu soube, queria tomar as bocas de fumo dessa localidade. Eu não vi os 'meninos' passando, mas o meu supervisor conseguiu ver a movimentação. Ele disse: 'Vamos sair daqui, que vai pegar fogo'. Tentei alcançar o grupo, mas os caras estavam armados e me mandaram parar. Se começassem a atirar, eu ia ficar no meio do fogo cruzado."
"Desmaiei com o susto. As pessoas me carregaram e me botaram em uma casa. Fiquei em choque. Quando me vi naquela situação, imaginei levar um tiro. Isso me causou um pico de estresse muito alto", afirma.
"A gente tem de ser cega, surda e muda"
No município de São Paulo, onde trabalham cerca de 8.000 agentes comunitários da Estratégia Saúde da Família, todos contratados por organizações sociais privadas a serviço da prefeitura paulistana, a regra para atuar e conviver em comunidades de risco é a chamada "lei do silêncio".
"A gente tem de ser cega, surda e muda. Nunca sei de nada. Senão, você não trabalha. Aí, você consegue conviver bem [com criminosos a serviço do tráfico de drogas, por exemplo]. Nunca aconteceu nada nem comigo nem com meus filhos", explica Marlene*, 53, agente comunitária com 12 anos de profissão que atua em área de periferia da região sudeste da capital paulista, lugar onde ela mesma mora. Marlene é responsável por visitar todo mês 197 famílias, totalizando cerca de 750 pessoas.
Fernanda*, 55, diz ter desenvolvido uma habilidade ao longo dos 15 anos de profissão: o jogo de cintura. "Tem casa e lugar em que a gente entra e vê tudo cheio de armas e drogas. Mas eles [criminosos] confiam no agente e nos respeitam, porque estamos ali para cuidar deles, das mulheres deles, dos filhos deles. E sabem que o que se vê ali não passa dali. Temos ética médica", ressalta Fernanda.
"Fiquei com depressão, mas a gente precisa do emprego"
Mas Marlene quase desistiu do trabalho, alguns anos atrás. Foi surpreendida no meio de atendimento por tiroteio entre a polícia e criminosos, teve de se esgueirar no chão e foi salva por uma moradora, que a abrigou em sua casa.
"Cheguei a pedir demissão e aí me afastaram por 15 dias. Fiquei com depressão. Mas a gente, quando precisa do emprego, tem de seguir."
Hoje, se algo semelhante acontecesse, diz que reagiria de modo mais firme, porque aprendeu a não demonstrar o medo que porventura sente: "Só quero fazer bem para a comunidade. Cada um no seu quadrado, como se diz: eles me respeitando, eu também respeito".
"Não temos ninguém que nos ouça"
"A exposição à violência no trabalho de um profissional da família é muito grande", pondera o médico e professor Paulo Menezes é coordenador do estudo "Esgotamento Profissional e Depressão em Profissionais da Estratégia Saúde da Família do Município de São Paulo". " É mais comum na forma de insultos e ameaças e não tanto em violência física. Isso impacta a saúde mental desses funcionários, a ponto de aumentarem as chances de depressão. A frequência entre eles é o dobro da população em geral: 40% contra 20%."
Conforme dados de 2015 do projeto comandado por Menezes, 52,3% dos profissionais entrevistados sofriam algum tipo de depressão por causa do trabalho. A depressão era leve ou moderada para 36,3% deles e grave para 16%. No total, foram avaliados 2.940 integrantes da estratégia na capital paulista. Os pesquisadores conversaram com agentes comunitários, auxiliares (técnicos) de enfermagem, enfermeiros e médicos, que formam uma equipe completa do programa.
"Estamos precisando de ajuda psicológica, não temos ninguém que nos ouça na hora em que precisamos desabafar. Vemos coisas que não conseguimos resolver, a pessoa adoecer e até morrer e não tem acompanhamento. É muito duro", aponta a agente Fernanda. "Temos de cuidar da saúde da população, mas não tem quem cuide da nossa."
Os agentes comunitários de saúde agora preparam para o dia 5 de outubro manifestação nacional contra a portaria 2.436, do Ministério da Saúde, publicada no último dia 21 de setembro. Abre a perspectiva da flexibilização da atividade dos agentes e do número dos contratados, que veem como mais uma ameaça, tão violenta quanto o ingresso em áreas conflagradas.
Rio adota protocolo de acesso seguro
Questionada sobre os casos relatados por agentes de saúde cariocas, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro informou por meio de nota que, em parceria com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, iniciou em 2009 a elaboração e implantação da Estratégia de Acesso Mais Seguro. É o estabelecimento de protocolos locais de segurança nas unidades de atenção primária (clínicas da família e centros municipais de saúde), muitas delas inseridas dentro de comunidades consideradas violentas.
Também procurada a se manifestar pelo UOL, a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador respondeu que, por medida de segurança, não daria nenhuma informação de profissionais que tenham vivenciado eventos relacionados à criminalidade.
Informou, entretanto, que, quando ocorrem os chamados toques de recolher, a determinação oficial é fechar imediatamente postos e unidades da rede até que as forças policiais restabeleçam a sensação de segurança na área afetada.
A Secretaria de Segurança da Bahia ressalta a necessidade de registro das situações de violência, "visto que, em nenhuma das localidades apontadas na reportagem, houve qualquer tipo de comunicação às unidades policiais responsáveis".
Procurada por diversas vezes em dias diferentes, a assessoria da Fiocruz não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Em São Paulo, a Secretaria Municipal da Saúde afirmou, por meio de nota, que "atua com equipes de Estratégia Saúde da Família em territórios de vulnerabilidade social" e "a orientação é para que, identificada a situação de risco, nenhum membro da equipe se exponha".
Segundo a secretaria, conforme a gravidade do caso notificado, "medidas preventivas podem ser tomadas, como a troca de área de atuação do agente ou da equipe".
O órgão informa também que realiza periodicamente reuniões com as equipes "a fim de avaliar todas as situações atípicas e definir conjuntamente como a atividade será realizada". Ainda diz promover "ações de educação permanente no sentido de fortalecer os profissionais" diante de casos de violência.
* Os nomes foram alterados para preservar as identidades dos entrevistados.
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