Violência impede mil alunos de estudar por dia no Rio; escola onde aluna morreu lida com tiroteios
Quase todos os dias a cena se repete. Um tiroteio começa, professores e alunos saem correndo da sala de aula, se agacham e esperam no corredor, visto como o local mais seguro por colocar mais uma parede entre eles a possibilidade de uma bala perdida entrar pelas janelas. Isso quando a escola abre. Em média, mil alunos por dia de 439 unidades escolares municipais não puderam nem ir à escola na cidade do Rio de Janeiro desde o começo do ano letivo de 2017 por conta da violência.
Ao todo, 157.920 alunos perderam ao menos um dia de aula entre 2 de fevereiro e 18 de outubro, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação. A maior parte das unidades estão localizadas em bairros e favelas da zona norte e oeste da capital. Nesse período, as escolas da rede funcionaram integralmente em apenas 11 dias.
Nas paredes da escola Jornalista Daniel Piza, em Acari, bairro em que mais unidades fecharam desde o começo do ano --39 de 158 dias letivos--, a tinta esconde as marcas dos tiros que resultaram na morte da adolescente Maria Eduarda Alves Ferreira, 13, atingida por três disparos de fuzil quando tomava água em um bebedouro no pátio da escola numa quinta-feira à tarde, no fim de março, durante uma aula de educação física. Apenas em agosto, os alunos da escola perderam uma semana de aula.
Os motivos que levam a escola a fechar as portas, diz o diretor da Daniel Piza, Luiz Menezes, variam --vão da entrada de carretas carregadas com produtos roubados, guardados por traficantes fortemente armados no complexo de favelas vizinho à escola, a rasantes de helicópteros da Polícia Militar sobre a unidade de ensino em dias de operação. A decisão envolve os pais, professores e até os alunos que, agentes informais de segurança, avaliam juntos se é possível abrir as portas.
Tem dias que recebo mensagens de mães avisando de tiroteios durante a madrugada, em outros, os professores chegam e percebem uma movimentação maior de pessoas armadas. Em outros momentos, precisamos fechar correndo no meio da tarde.
Luiz Menezes, diretor da escola Daniel Piza
Segundo ele, é sempre uma decisão tomada em conjunto com os professores e a comunidade, "e sempre uma decisão difícil".
Na quinta-feira (19) em que a reportagem do UOL visitou o colégio, uma criança que participava da aula de educação física gritou para o diretor que dois carros blindados da polícia estavam se aproximando, por volta das 16h. Apreensivo, Menezes correu para a grade da escola para observar. Voltou quando percebeu que os veículos seguiram em outra direção.
Mais cedo, um grupo de professores e 16 alunos seguiam em quatro carros para um torneio intercolegial de esportes, quando foram parados por policiais armados com fuzis que mandaram que todos descessem.
“Já sai com os braços levantados, pedindo calma, dizendo que éramos professores e estávamos com crianças. O policial veio dizendo que eu estava fazendo um ‘circo’”, conta o professor Marcelo Lima, que acompanhava o grupo. Não raro, diz, eles são revistados antes de entrar na escola. “É nesse estado que a gente chega para dar aula.”
Desde a morte de Maria Eduarda, afirma Menezes, qualquer aproximação da polícia passou a ser vista com preocupação. Por todos os corredores há cartazes pedindo paz, desenhados pelos alunos logo após a tragédia. Grafites lembram a estudante, que sonhava em jogar basquete.
"Antes sabíamos das dificuldades lá fora [o colégio é vizinho do Complexo de favelas da Pedreira, uma das regiões mais violentas da cidade], mas achávamos que aqui dentro estávamos seguros, que os alunos estavam seguros. Perdemos isso."
Para além do medo de que uma situação como a que ocorreu com Maria Eduarda se repita, Menezes diz que o desempenho escolar dos alunos é um dos principais pontos afetados pela intermitência das aulas.
A diarista Ana Cristina Cruz, 50, tem dois filhos de 15 anos e uma neta de 16 matriculados na escola e se habitou a telefonar para a direção para checar se vai ou não ter aula antes de os jovens saírem de casa.
Ela conta que os meninos não se importam tanto em perder aula, mas que a neta fica preocupada. “Ela não gosta, tem medo de não passar de ano, ir mal”, diz.
“Você acha que nossa escola tem condição de concorrer em pé de igualdade com uma escola de Copacabana, Ipanema, seja onde for, que tem a tranquilidade de ter 200 dias letivos, de não ter aulas interrompidas por tiroteios? Por caminhões de carga roubada com bandidos pendurados na porta?”, questiona o diretor, ao lembrar a Prova Brasil, avaliação nacional de estudantes realizada pelo Ministério da Educação que ajuda a compor o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), marcada para o fim de outubro.
Efeitos da Violência
Segundo o estudo "Educação em Alvo: Os Efeitos da Violência Armada nas Salas de Aula", realizado pela Fundação Getúlio Vargas em conjunto com o aplicativo Fogo Cruzado, "a exposição à violência gera efeitos duradouros e afeta diretamente as possibilidades de vida dos cidadãos”.
A convivência com uma rotina de violência, diz o relatório, interfere na capacidade de aprendizado e de desenvolvimento de novas habilidades, o que compromete as possibilidades de vida de crianças e jovens. O documento admite que os problemas da segurança pública são de difícil solução e de longo prazo e defende a necessidade de priorizar ações.
Entre elas, a garantia da segurança das áreas de exposição à violência, priorizando o horário de funcionamento das escolas e creches; a realização de capacitações para os professores, de forma que eles possam atender às necessidades especiais de seus alunos decorrentes da exposição à violência; e o oferecimento de condições especiais de contratação para os profissionais que atuam nessas áreas visando garantir estabilidade nas relações escolares para diminuir a alta rotatividade de professores.
Estas condições especiais devem envolver desde adicionais salariais pelas condições de insegurança até o acompanhamento psicológico continuado para os próprios professores, passando por cursos de capacitação mais frequentes e pela proibição de a polícia usar creches e escolas como bases operativas.
Para a pesquisadora da FGV/DAPP, Barbara Barbosa, há também que se “garantir a presença de profissionais de saúde mental especializados em atender crianças e adolescentes com comportamentos similares ao transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), capazes de lidar com os traumas advindos da exposição rotineira à violência”.
Diretor de políticas públicas da ONG Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho, diz que o desempenho escolar tem relação tanto com fatores internos --estrutura, professores, etc.--, como externos, e que, mais do que as interrupções, é preciso levar em conta o ambiente em que essas escolas estão inseridas.
“A escola precisa reconhecer o contexto em que o aluno está”, diz, ao lembrar a necessidade de olhar para os professores e colégios nessa situação como espaços que impactam a realidade desses locais. “Dependendo da região, a escola é o único equipamento do Estado que as pessoas têm para socializar.”
A Secretária Municipal de Educação informou que vê com preocupação o excesso de dias em que os alunos ficam sem ter como ir à escola e estuda qual a melhor forma para recuperar os conteúdos perdidos. De acordo com a pasta, a Secretaria de Segurança Pública do Estado se comprometeu a evitar a realização de operações policiais em regiões próximas a escolas e nos horários de entrada e saída dos alunos.
No caso da Daniel Piza, a direção da unidade espera a construção de um muro em torno da escola, hoje cercada por grades, e de um ginásio no local da quadra, tida como o espaço mais vulnerável, obras prometidas logo após a morte de Maria Eduarda. A Secretaria de Educação informou que as intervenções estão previstas e que aguarda recursos de um empréstimo junto à Caixa Econômica Federal para dar início às obras.
Em agosto, a Secretaria de Segurança publicou uma instrução normativa no Diário Oficial para que seus agentes evitem confrontos e situações que possam envolver disparos em áreas próximas a escolas, creches, postos de saúde e hospitais. Segundo o documento, policiais civis e militares devem evitar operações em horários de maior fluxo de entrada e saída nas unidades de ensino.
A norma prevê ainda “o não baseamento de recursos operacionais nas entradas e interior de tais estabelecimentos, principalmente, entrada e saída de alunos nos estabelecimentos de ensino". O texto é assinado pelo secretário estadual de Segurança, Roberto Sá.
Entretanto, Menezes diz não ter percebido muita diferença. Segundo ele, há operações policiais frequentes durante todo o período letivo; se as ações não levam ao fechamento da unidade, impedem que muitas crianças saiam de casa para chegar até a escola.
“A primeira coisa que eu preciso fazer para que um aluno dê conta de uma prova de matemática é que ele esteja em sala de aula estudando matemática”, diz Menezes.
“Às vezes, eu não tenho ele em sala mesmo com a escola funcionando. Aqui está tranquilo, mas no entorno não, e ele não vem. Para que ele aprenda matemática, português, geografia, etc., preciso primeiro que ele esteja aqui dentro e muitas vezes não consigo tê-lo aqui dentro por conta da violência.”
(Com informações da Agência Brasil)
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