Sociedade vê preso como alguém que pode ser 'ejetado', diz Gilmar Mendes
Para o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes, o problema da superlotação nos presídios deve ser combatido com a integração do sistema de Justiça criminal do país e medidas que reduzam o percentual de presos provisórios (ainda sem condenação definitiva da Justiça).
Dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), divulgados nesta sexta-feira (8), mostram que, em um período de 26 anos, a população carcerária do Brasil multiplicou oito vezes e chegou a exatas 726.712 pessoas presas, o dobro do número de vagas nas penitenciárias e carceragens de delegacias do país.
Gilmar Mendes, que em julgamentos recentes afirmou que presos e investigados devem ter os direitos garantidos, disse em entrevista ao UOL que o problema é “negligenciado” e que a sociedade vê o preso “como um sujeito suscetível de ser ejetado”.
“Continua grave a situação: 40% de presos provisórios, falta de vagas. O que é um atentado à dignidade humana”, afirma.
Para Mendes, o problema da superlotação está diretamente ligado ao percentual de presos provisórios que ocupam vagas nas cadeias. A informatização do sistema carcerário, segundo ele, seria uma maneira de identificar detentos que já poderiam ter sido libertados.
Em sua gestão no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Mendes realizou mutirões carcerários para acelerar o julgamento dos processos dos detentos, o que resultou na libertação de cerca de 20 mil presos em 20 Estados.
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O ministro também diz acreditar que as mudanças na Lei de Drogas, implementadas em 2006, que diferenciaram o tratamento a traficantes e usuários, podem ter contribuído para aumentar o número de presos no país. Em 2006, havia 401 mil presos no Brasil. Hoje, no total de 726 mil, os detidos por crimes relacionados ao tráfico de drogas somam 176 mil.
A lei que veio para diminuir as prisões no caso do narcotráfico, do tráfico de drogas e deixar o pequeno traficante fora da prisão não está atendendo a seus objetivos
Ministro Gilmar Mendes
Veja os principais trechos da entrevista.
Como avalia os dados do sistema carcerário?
Continua grave a situação: 40% de presos provisórios, falta de vagas. O que é um atentado à dignidade humana. Certamente já não eram vagas exemplares as 368 mil [número de vagas existentes]. Aí você tem mais de 700 mil presos, então é praticamente o dobro.
E esse tema é muito negligenciado. Essa é a minha sensação. E tem todas as dificuldades de construção de presídios. Nós tomamos aquela decisão no Supremo no sentido de liberar o Funpen [Fundo Penitenciário Nacional; em 2015, o STF proibiu o governo de contingenciar o fundo], mas aparentemente ainda não tem efeito.
E também acho que houve um aumento da prisão provisória. Eu acho que a gente tem de controlar isso e talvez devesse ter um sistema informatizado. Para você ter condições de fazer uma correição eletrônica, saber por que alguém está preso há tanto tempo provisoriamente. Esses absurdos ocorrem.
A quantidade de presos provisórios contribui para a superlotação?
Com certeza. E veja, o ministro [do STF Ricardo] Lewandowski implementou a audiência de custódia. Porque antes havia aquela rotina: a prisão em flagrante, o juiz não tinha contato com o preso e deixava o preso [encarcerado]. Se a audiência de custódia não ajudou a diminuir, talvez tenha evitado que aumentasse mais.
Mas eu acho que a gente deveria discutir também as prisões provisórias. Na minha gestão, ainda naquele ato republicano, nós criamos as medidas alternativas à prisão, o artigo 319 do Código de Processo Penal. O maior elemento desse processo é a tornozeleira eletrônica. Muitos Estados não têm, você já viu disputas aí, Goiás emprestando tornozeleiras para o Distrito Federal.
E tem um problema que a gente precisa olhar, acho que aumentou muito. Acho que a lei que veio para diminuir as prisões no caso do narcotráfico, do tráfico de drogas e deixar o pequeno traficante fora da prisão não está atendendo a seus objetivos.
Acho que as pessoas não sabem da integração do próprio sistema. Você tem de integrar promotoria e Justiça criminal com polícia, isso é meio descasado.
Uma crítica ao sistema carcerário é a de que ele funciona como recrutamento às facções criminosas.
Hoje, como alguns presídios estão tomados pelas facções, o sujeito que entra lá e consegue sair sai como mensageiro do crime. Então isso é um grave problema.
Quando você fala dos direitos dos presos, faz uma contraposição às cobranças na sociedade por leis penais mais duras. Isso se reflete no problema dos presídios?
Os dados não são seguros, mas indicam que 8% dos homicídios são desvendados. Então nós temos uma Justiça criminal muito ruim nos resultados gerais. Não adianta nada você transformar isso e aquilo em crime hediondo se você não consegue julgar os crimes. Não adianta uma legislação simbólica se você de fato não aplica. E é melhor aplicar uma pena com celeridade, ainda que baixa, do que não fazer nada. Você tem casos no Brasil de prescrição de crime de homicídio, estou falando de 20 anos sem resolver.
Se fosse apontar um caminho para resolver o problema, qual seria?
Eu acho que tem que ser um trabalho integrado. Tem que integrar o sistema de segurança pública, os secretários de Justiça com Judiciário, Ministério Público, polícia.
Hoje acho que incrivelmente há condições. Por conta da conferência dos secretários de Justiça, do CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público], do CNJ [Conselho Nacional de Justiça], Conselho Penitenciário, eles podiam ser mais integrados.
Na minha gestão [no CNJ], nós tentamos fazer a estratégia de segurança pública, terminar os inquéritos, julgar os casos, mutirão de júri. É preciso integrar e criar um sistema mesmo de segurança. Você não pode esquecer que a Justiça criminal integra o sistema de segurança.
A sociedade dá pouca importância a esse tema?
Ela não está bem-informada sobre isso. E ela vê o preso, nós fizemos uma pesquisa na minha época, como um sujeito suscetível de ser ejetado, mandado embora. E esquece que aquele sujeito que se libera amanhã volta e vai voltar a assaltar, cometer latrocínio, se você não cuidar.
Eu mesmo tenho uma experiência, ainda do projeto Começar de Novo. No meu gabinete, tenho cinco pessoas egressas do sistema prisional. É preciso fazer algo nesse sentido. Mas acho que a base seria a integração e, a partir daí, verificar o que seria possível fazer.
Muitas vezes, por exemplo, a população entra com uma ação popular contra a instalação de presídio num dado município. Talvez a gente devesse pensar num tipo de compensação para o município que recebe presídio, porque essa é uma das dificuldades hoje. E os juízes dão liminar para proibir construção de presídio.
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