Justiça condena família de baixa renda a pagar conserto de R$ 24 mil de carro da PM
A Justiça de São Paulo condenou uma família de baixa renda da capital a pagar R$ 23.803 pelo conserto de uma Hilux da Polícia Militar que atingiu um veículo durante uma perseguição. O caso aconteceu em abril do ano passado no Itaim Paulista, extremo leste da cidade, quando um adolescente então com 15 anos roubou um Volkswagen Fox, e, supostamente em fuga da abordagem policial, colidiu contra um muro. Os policiais na Hilux não conseguiram parar e atingiram o carro.
A condenação determinada no último dia 17 pela juíza Celina Maria Macedo, da 15ª Vara da Fazenda Pública, atinge os pais do adolescente e ele próprio, hoje com 16 anos. O pedido de ressarcimento foi feito à Justiça pelo governo de São Paulo, por meio da Fazenda Pública do Estado. A decisão surpreendeu especialistas e o próprio Ministério Público, que deve recorrer.
A parte autora se valeu de uma sindicância da PM segundo a qual o adolescente realizava manobras arriscadas com o veículo roubado. De acordo com essa investigação, ao serem notificados por populares sobre a situação, os policiais começaram a perseguir o carro com sirene e giroflex acionados. Mesmo assim, ao empreender “sua fuga tresloucada” da perseguição, o adolescente “efetuou manobras perigosíssimas, sem o cuidado e a atenção que dele se exigia”.
Na fuga, o adolescente bateu em uma mureta. Logo na sequência, ao fazerem a curva para entrar em uma rua, os policiais bateram na traseira do veículo roubado, o que causou “danos de grande monta” à Hilux da corporação. Para o governo paulista, de acordo com o processo que tramita no Tribunal de Justiça, “não há dúvidas de que a culpa pelo acidente de trânsito é do corréu D.S.S., porquanto, em sua fuga tresloucada, não respeitou o comando de parada, não observou os cuidados necessários no trânsito, e, agindo com imprudência e negligência, colidiu com uma mureta”.
Os pais do adolescente foram corresponsabilizados pelo prejuízo ao erário, já que o filho é menor de idade. Foram ouvidos como testemunhas no processo dois PMs que estavam na Hilux – entre eles, o condutor, que alegou ter evitado o atropelamento de um pedestre, ao fazer a manobra. Um suspeito que estava no banco de trás do carro roubado disse que a velocidade dele era de 40 a 50 km/h.
Sem condições financeiras
A defesa dos réus, feita pela Defensoria Pública, alegou a falta de condições financeiras da família em arcar com o prejuízo requerido pelo Estado –juntos, pai e mãe ganham R$ 1.100 na família de três filhos e dois netos. Outra alegação foi a de que “aquele que sofre colisão na parte traseira de seu veículo tem em seu favor a presunção de culpa do outro condutor, diante da aparente inobservância do dever de cautela pelo motorista”.
A defesa sustentou que, embora carros policiais e viaturas, por exemplo, tenham prioridade no trânsito garantida pelo CTB (Código de Trânsito Brasileiro), “tal prerrogativa (...) não desincumbe seus condutores do seu dever de cautela, isto é, a prioridade legal não é absoluta no sentido de imunizar o Estado nos casos de acidente de trânsito desse jaez, mas pelo contrário: o dever de cautela deve ser ainda maior.”
O Ministério Público pediu que a condenação não se aplicasse em respeito a trechos do Código de Processo Civil que tomam por base a insuficiência financeira do incapaz ou dos familiares dele.
Também o Enunciado 39 do Conselho da Justiça Federal, em complemento ao artigo 928 do Código Civil, foi considerado. “A impossibilidade de privação do necessário à pessoa, prevista no art. 928, traduz um dever de indenização equitativa, informado pelo princípio constitucional da proteção à dignidade da pessoa humana. Como consequência, também os pais, tutores e curadores serão beneficiados pelo limite humanitário do dever de indenizar, de modo que a passagem ao patrimônio do incapaz se dará não quando esgotados todos os recursos do responsável, mas se reduzidos estes ao montante necessário à manutenção de sua dignidade”, diz o enunciado.
Argumento "incabível", avalia juíza
Para a juíza, no entanto, a responsabilidade direta pelo acidente foi, exclusivamente, do adolescente. Na avaliação da magistrada, “é inegável” que, se ele não tivesse fugido da polícia, “o resultado danoso não teria ocorrido, eis que sem perseguição não teria perdido o controle da direção e colidido contra o muro, bem como não haveria a colisão que a sucedeu”. Ela também não acolheu o argumento de incapacidade financeira dos pais.
“Da mesma forma, incabível a alegação da defesa de que deve prevalecer a presunção de culpa daquele que colide contra a traseira de veículo à sua frente também em virtude do dever de cuidado imposto ao motorista da viatura, tendo em vista que o corréu D., com a sua conduta, criou o risco de produção do resultado danoso, atraindo para si, por via de consequência, a responsabilidade pelos danos produzidos a outrem. Ora, cuidou-se de uma perseguição policial, na qual o corréu D., menor de idade, de forma irresponsável, dirigia veículo sem ser habilitado, desobedeceu à ordem de parada policial, efetuou manobras perigosas e colidiu contra um muro, sendo esta a principal causa, direta e imediata, do abalroamento sofrido logo em seguida”, apontou, no despacho.
A reportagem apurou com fontes do Ministério Público que a decisão da magistrada gerou indignação, já que os pais do adolescente não têm condições de arcar com os quase R$ 24 mil –além da correção monetária desse valor, no período. A Promotoria não quis se pronunciar oficialmente, mas adiantou que vai recorrer.
Especialistas divergem de magistrada
O UOL repercutiu os argumentos das partes e a decisão judicial com especialistas em segurança de trânsito e em direito viário.
O presidente da comissão de direito viário da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo), advogado Maurício Januzzi, classificou o entendimento da magistrada como “equivocado” na análise do caso.
“Porque, mesmo que em situação de perseguição, você tem que manter a cautela para que não haja nenhum mal a terceiros e nem a quem está sendo perseguido. Se a viatura estava em alta velocidade e não freou a tempo, o fato de ela estar em perseguição não retira do condutor a observância das regras de trânsito –ainda que ele detenha prioridade na passagem”, explicou o advogado.
O presidente da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego), Dirceu Rodrigues Alves Júnior, apontou que “todos são iguais operante a lei”. “Temos que entender que policial ou qualquer outra autoridade devem respeitar os regulamentos determinados, e o desrespeito que temos visto é bastante comum no ambiente policial, mesmo que seja para alegar fuga de suspeito –ele não pode alcançar esse suposto bandido colocando em risco a vida dos outros e do próprio perseguido. É um absurdo permitir esse tipo de atitude, e um adolescente em fuga não é motivo para a polícia investir em uma ação de trânsito a ponto de causar danos e por sob risco de morte a vida de quem quer que seja”, definiu.
Alves admitiu que, embora as leis de trânsito responsabilizem o condutor de trás em situações de batidas traseiras, há casos excepcionais em que a culpa não é exatamente dele. “Se aparece um obstáculo para quem está à frente e ele freia bruscamente, por exemplo, é difícil quem estar atrás ser exatamente o responsável pelo acidente. Mas a maior parte dessas colisões ocorre, em geral, por desatenção ou uso de equipamentos tecnológicos, como celular; não me parece ser o caso em uma perseguição policial, que exige uma cautela redobrada com a vida e com as regras que a preservam”, concluiu.
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