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Pai disfarçado e visitas na prisão: relatório resgata lembranças dos filhos da ditadura na Paraíba

O advogado e pesquisador Waldir Porfírio e o jornalista Cristiano Machado - Francisco França/UOL
O advogado e pesquisador Waldir Porfírio e o jornalista Cristiano Machado Imagem: Francisco França/UOL

Colaboração para o UOL, em João Pessoa

13/01/2018 04h01

“Eu estava chegando da escola e vi meu pai saindo da nossa casa. Ele me abraçou e disse que voltava logo. Nunca mais voltou.” Esta é a lembrança que Naúgia Araújo, 63, tem do dia em que o pai, Pedro Fazendeiro, então com 55 anos, saiu de casa para prestar depoimento ao Exército. O ano era 1964 e Pedro, líder camponês, estava na mira da ditadura militar no Brasil.

Até hoje, passados 32 anos do fim do regime, os “filhos da ditadura” choram as mortes e os desaparecimentos registrados naquele período. Os relatos desses dias sombrios constam no relatório final da CEVPM-PB (Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba), realizado por cinco anos e concluído em 2017. O documento final foi entregue em dezembro passado no Palácio do Governo, em João Pessoa, e aponta a tortura de 125 pessoas --nascidas ou que à época estavam na Paraíba-- durante o regime militar.

O pai de Naúgia está entre elas. A caçula de cinco filhos tinha dez anos quando Pedro saiu de casa para prestar depoimento e, em seguida, foi preso no 15º Batalhão de Infantaria Motorizado, em João Pessoa. Ela conta que aquele dia ficou marcado pela dor e sofrimento da família.

“Durante alguns meses, aos domingos, minha mãe, meus irmãos e eu íamos visitar nosso pai na prisão do quartel. Minha mãe sempre perguntava se ele tinha esperança de voltar para casa, mas quando fizemos a última visita ele estava triste, pensativo.” Um dia depois, a família recebeu a notícia que Pedro Fazendeiro havia sido solto. Desde então, porém, ele nunca mais foi encontrado.

As lembranças que tenho do meu pai são poucas. Esqueci sua fisionomia porque a história não permitiu que fosse o contrário. Para todos os filhos, meu pai traçou um destino: médico, engenheiro, advogado, professor. Ele não teve tempo de sonhar com meu futuro, a ditadura não deixou
Naúgia Araújo, filha de desaparecido na época da ditadura

Mesmo muito pequena na época, Naúgia guarda lembranças amargas. Ela conta que, após o desaparecimento do pai, a família chegou a passar fome. “Foram anos difíceis. Meu pai desaparecido, minha família desamparada, sem nada para comer. Foi um período muito doloroso, que deixou marcas”, explica.

Com o desaparecimento de Pedro, as condições financeiras da família reduziram drasticamente, fazendo com que se desenvolvesse uma nova dinâmica no modo da vida deles, conforme consta no relatório da Comissão Estadual da Verdade da Paraíba. Um dos irmãos de Naúgia, Walter, então com 13 anos, foi trabalhar na construção civil e duas irmãs, ainda adolescentes, conseguiram emprego no comércio de João Pessoa. 

À comissão, Naúgia relatou que por diversas vezes presenciou o Exército invadindo sua residência em Sapé para procurar armas vindas de Cuba. Segundo ela, os homens do Exército rasgavam os sacos de farinha de seu pai, abriam também os colchões de cama e até os sacos de arroz e feijão, mas nunca encontraram nada.

“Com o advento da anistia política de 1979, quando os presos estavam recebendo liberdade, os exilados voltando ao país, os clandestinos retornando à cidadania, a esperança de reencontrar Pedro Fazendeiro foi reacendida na família”, destaca trecho do relatório. Mas isso nunca veio a acontecer. 

O advogado e pesquisador Waldir Porfírio  e o jornalista Cristiano Machado - Francisco França/UOL - Francisco França/UOL
O advogado e pesquisador Waldir Porfírio e o jornalista Cristiano Machado
Imagem: Francisco França/UOL

Disfarce para visitar o filho recém-nascido

O jornalista Cristiano Machado, 53, também teve uma infância conturbada devido à perseguição sofrida pelo seu pai, o jornalista Jório Machado. Um dia após o nascimento de Cristiano, em 8 de abril de 1964, o pai foi preso.

“Minha mãe conta que ele foi me conhecer na maternidade disfarçado, com chapéu e capa, temeroso de ser reconhecido. Menos de 24 horas depois, seria preso e encaminhado para Fernando de Noronha, onde ficou por três meses”, conta - o drama vivido pelo jornalista é relatado no livro "A Opressão dos Quartéis" (Editora O Combate, 1991). 

A prisão teve consequências diretas para toda a família: a mãe foi com os filhos pequenos para a casa da avó e lá permaneceu até Machado ser libertado. Sobre a prisão em Noronha, Jório destacou no livro: “Enfim, partimos de madrugada, em cima de um caminhão de bancos de madeira mais duros do que ferro, acompanhados de quatro soldados, armados de fuzis e patrulhados por jipes que conduziam a escolta. Levamos cinco horas para chegar no Recife, em estrada de barro semibatido”.

Depois vieram vários outros registros de prisão, até por volta de 1978. “Vários crimes eram atribuídos a ele. Meu pai abriu uma gráfica e, sempre que havia distribuição de panfletos em tom de manifestação, ele virava alvo”, afirma. Jório Machado morreu em julho de 2003, aos 68 anos de idade. 

Embora tenha poucas lembranças daquela época, Cristiano diz que foi um período de instabilidade. “Minha mãe me contou tudo. Como, por exemplo, quando eu tinha uns três anos e chegou um jipe da polícia para levar meu pai, isso de madrugada. Essa era a vida da nossa família. A gente não tinha sossego”, relata o jornalista.

O advogado e pesquisador Waldir Porfírio que investigou crimes cometidos por agentes de Estado durante a ditadura - Francisco França/UOL - Francisco França/UOL
O advogado e pesquisador Waldir Porfírio que investigou crimes cometidos por agentes de Estado durante a ditadura
Imagem: Francisco França/UOL
As coisas só ficaram mais tranquilas por volta dos anos 1980, quando Jório Machado fundou o jornal "O Momento". Segundo Cristiano, apesar da linha dura do regime, Jório sabia conduzir o jornal. “Não era um jornal panfletário, mas opinativo, analítico. Havia abertura para todas as opiniões, por isso nunca sofreu censura", lembra o filho. 

"Graves violações contra os direitos humanos"

Para fazer o relatório, a comissão da verdade buscou esclarecimento de “graves violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos contra qualquer pessoa no território da Paraíba, ou aos paraibanos que se encontravam em outros Estados ou países”.

O relatório final tem quase 750 páginas e traz detalhes sobre as torturas e perseguições. Foram descobertos, por exemplo, boletins e outros documentos da Polícia Militar da Paraíba que “tratam do envolvimento de policiais em crimes, embora, pela imprecisão dos registros", não se tenha "condições de identificar quando se tratam de crimes comuns ou políticos”.