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"Medo dos militares é por não reconhecerem seus erros", diz ex-coordenador da Comissão da Verdade

Pedro Dallari é professor da USP e coordenou a Comissão Nacional da Verdade - Marcio Neves/UOL
Pedro Dallari é professor da USP e coordenou a Comissão Nacional da Verdade Imagem: Marcio Neves/UOL

Leandro Prazeres

Do UOL, em Brasília

23/02/2018 04h00

intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada pelo presidente Michel Temer (MDB), é "muito preocupante", marcada pelo "improviso", e o medo que parte da população ainda tem em relação aos militares é causado pelo fato de as Forças Armadas não terem, até hoje, "reconhecido os erros do passado", em menção ao período da ditadura militar (de 1964 a 1985). Essa é a opinião de Pedro Dallari, advogado e professor da USP (Universidade de São Paulo), que coordenou os trabalhos e o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. 

Na semana passada, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, pediu ao presidente Temer garantias de que os militares em ação na intervenção federal no Rio de Janeiro não fosse submetidos a uma futura "comissão da verdade". A declaração é uma menção aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que encerrou seus trabalhos em 2014. Em breve entrevista ao UOL, Dallari disse que a declaração de Villas Bôas é "preocupante" e, até certo ponto, "assustadora".

A Comissão Nacional da Verdade foi instituída pelo Congresso Nacional em 2011 para apurar as responsabilidades de agentes públicos e privados sobre graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar.

O relatório final identificou 377 pessoas responsáveis por essas violações e recomendou a responsabilização de 196 que, à época, ainda estavam vivas. Parte dessas pessoas eram militares. Por conta da Lei da Anistia e de decisões do STF (Supremo Tribunal Federal), ninguém foi criminalmente responsabilizado até hoje.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida por Pedro Dallari:

UOL - Qual sua opinião sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro?

Pedro Dallari - É muito preocupante. A figura da intervenção é possível e prevista na Constituição Federal. No entanto, o que se constata no caso específico é uma completa improvisação. A impressão que fica é a de uma ação que, mesmo que possa ser movida pelas melhores intenções, reflete uma conduta improvisada e com enorme risco para os próprios objetivos.

Que riscos seriam esses?

Riscos de ineficácia. Risco de os objetivos perseguidos não serem alcançados, desmoralizando-se um mecanismo importante e podendo afetar a reputação das Forças Armadas e a estrutura de segurança pública. Dado o caráter quase que de última opção, caso ela não funcione, o que poderá vir na sequência? Esse improviso é muito preocupante. 

General Eduardo Villas Boas - Reprodução/Rede Globo - Reprodução/Rede Globo
General Eduardo Villas Bôas pediu que militares não sejam submetidos a nova Comissão da Verdade
Imagem: Reprodução/Rede Globo

Como o senhor avalia a declaração do general Villas Bôas sobre a necessidade de evitar uma nova comissão da verdade?

É uma declaração muito preocupante. A CNV (Comissão Nacional da Verdade) foi constituída pelo Congresso Nacional com a finalidade de investigar graves violações de direitos humanos que já haviam sido reconhecidas pelo Estado.

Quando o general pede que os militares não sejam submetidos a uma nova comissão da verdade, a gente precisa se perguntar o que o levou a pedir isso. Será que ele está imaginando que as Forças Armadas vão praticar graves violações de direitos humanos durante essa intervenção? Porque, se ele imagina que sim, então isso é muito preocupante.

É de alarmar que possa vir a ocorrer um quadro de graves violações de direitos humanos durante essa intervenção. Isso é assustador. Se o general está preocupado com isso, é de se ficar assustado.

Há meios para garantir que esses militares não sejam submetidos a uma futura comissão da verdade, como pediu o general?

Não tem como garantir. A CNV foi criada pelo Congresso Nacional. Não tem como impedir que uma nova comissão possa ser formada no futuro se for o caso. Não há nenhuma possibilidade. E, mesmo que o Congresso Nacional venha a impedir que se apurem violações de direitos humanos no futuro, essa apuração já se daria nos marcos jurídicos atuais. Pelas autoridades constituídas hoje.

Mais de 50 anos depois do golpe de 1964, o senhor se surpreende com declarações como a do general Villas Bôas?

Sem dúvida. Ao longo dos trabalhos da CNV, fiz questão de ressaltar que considero as Forças Armadas de hoje comprometidas com a democracia. Não vejo na conduta das Forças Armadas, desde a redemocratização do país, nenhuma discrepância. Elas têm se pautado e se conduzido pelo respeito à ordem democrática.

O que elas não conseguiram superar é a incapacidade de lidar com o passado. De reconhecer um passado que foi muito ruim. As Forças Armadas atuaram institucionalmente para a prática de graves violações de direitos humanos.

O que houve no passado, e a comissão demonstrou isso, não foi a conduta de alguns indivíduos isoladamente. Foi uma ação organizada. O que é lamentável é que, até hoje, as Forças Armadas não reconhecem com clareza essa conduta que houve no passado. É lamentável que elas se recusem a reconhecer o que fizeram. Por que fica todo mundo fica assustado quando se fala em intervenção federal e o uso das Forças Armadas? O medo dos militares é porque eles não reconheceram erros do passado.

Já que o senhor falou nos marcos jurídicos atuais, no ano passado, o Congresso aprovou uma lei que determina que os crimes cometidos por militares em missões como uma intervenção federal sejam julgados pela Justiça Militar. O que o senhor acha dessa mudança?

Não é boa essa solução. O ideal é que a Justiça comum julgasse todos os casos em que ocorram a prática de crimes. Não me parece adequada essa distinção que foi feita. Não quero prejulgar a Justiça Militar e dizer que serão todos absolvidos. Seria leviano da minha parte fazer uma avaliação automática dessas. Mas é muito ruim essa solução e o ideal é que se voltasse à situação de isonomia e que todos fossem julgados pela Justiça comum.

Integrantes do governo defenderam a utilização de mandados de busca coletivos. Qual sua posição sobre isso?

Isso é mais um indicativo da falta de planejamento dessa intervenção. Porque [mandado de busca coletivo] é uma figura inconstitucional e sujeita a ser impedida por qualquer autoridade judiciária. Isso demonstra, mais uma vez, como essa intervenção está sendo pautada pela improvisação.

Ossada Perus - Matuiti Mayezo/Folhapress - Matuiti Mayezo/Folhapress
Ossadas clandestinas encontradas no cemitério de Perus (SP)
Imagem: Matuiti Mayezo/Folhapress

É possível comparar esse tipo de mandado coletivo com alguns dos dispositivos previstos no AI-5 (Ato Institucional nº 5)?

De jeito nenhum. O AI-5 foi adotado no contexto de uma ditadura militar. O Brasil hoje vive um quadro democrático. Com a prevalência do Judiciário na aplicação do direito. É, realmente, uma improvisação que acaba gerando formulações equivocadas e que o próprio governo está tendo que voltar atrás. O próprio governo está dizendo que ninguém mais vai falar além do interventor.

Nesta semana, foi identificada a ossada de um militante de esquerda encontrada em uma vala no cemitério de Perus (SP). O que essa identificação ainda diz sobre o período da ditadura militar?

Eu era vereador na cidade de SP, quando, em 1989, foram localizadas essas ossadas numa vala clandestina no cemitério de Perus. Eu acompanhei essa história desde os primeiros momentos. Essa identificação é um prêmio à atuação dos familiares de mortos e desaparecidos ao longo de todas essas décadas e ajuda a resgatar a memória do Brasil. A expectativa é que esse trabalho tenha continuidade.

Por outro lado, fica faltando [uma etapa], e as Forças Armadas estão em dívida, porque não ajudaram a localizar os corpos de militantes mortos durante a Guerrilha do Araguaia. No caso do cemitério de Perus, a gente tem as ossadas. No caso do Araguaia, a situação é muito mais grave porque os corpos nunca foram localizados. E isso só será possível com a ajuda dos militares, o que até agora não houve.

O que diz o Exército sobre o caso em Araguaia:

Em nota, o Exército disse que apoiou, "desde o início, todos os trabalhos de localização dos corpos de desaparecidos na Guerrilha do Araguaia" e que a "Força Terrestre também foi responsável por proporcionar apoio logístico para o desenvolvimento de todos os trabalhos".