As Forças Armadas podem atirar para matar durante a intervenção no Rio?
A intervenção federal no Rio de Janeiro reacendeu o debate sobre até que ponto militares podem usar a força para confrontar o crime organizado. O UOL fez um levantamento, com base na legislação e nas regras internas das Forças Armadas, sobre o que soldado está ou não autorizado a fazer durante ações de segurança pública.
A ideia geral na atual operação de intervenção no Rio é que o militar evite ao máximo atirar para matar durante uma operação. O presidente Michel Temer (MDB), que é o comandante em chefe das Forças Armadas, já afirmou que choques devem ser evitados mas, "se houver necessidade [o militar], parte para o confronto", disse.
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As orientações e procedimentos que devem ser seguidos pelos soldados são baseados na legislação brasileira (Constituição, Códigos Penal e Processual Penal Militar). E também em normas que são chamadas no jargão militar de “regras de engajamento”. Elas foram estabelecidas em julho de 2017 no âmbito do Ministério da Defesa, especificamente para a operação de GLO (Garantia de Lei e de Ordem) no Rio que fica em vigor até o fim do ano.
Elas determinam, por exemplo, que antes de mirar em um criminoso que esteja atirando contra a tropa, o militar tem que dar um tiro de advertência. Se isso não funcionar, ele deve tentar mirar nas pernas do suspeito, para tirá-lo de ação sem matar.
Porém, em casos extremos, que resultem em mortes, o militar pode ser processado por homicídio. Desde o ano passado, casos desse tipo não vão a júri popular na Justiça comum, mas são julgados pela Justiça Militar. Se o magistrado entender que a conduta do soldado foi legítima, ele não é condenado.
A intervenção no Rio, iniciada no dia 16 de fevereiro, levou analistas a propor que essas regras sejam flexibilizadas, para facilitar a ação das Forças Armadas e evitar processos judiciais.
O debate também englobou a adoção de ferramentas jurídicas polêmicas, como o mandado de busca e apreensão coletivo e a discussão sobre a necessidade de se fotografar moradores de favelas durante operações de segurança pública.
Veja abaixo o que pode e o que não pode ser feito segundo as normas em vigor atualmente:
Em quais situações o militar pode usar a força contra criminosos?
- Em legítima defesa contra ataques diretos ou no caso de ameaças concretas à sua integridade física
- Para evitar que um membro da tropa seja capturado
- Para proteger equipamentos e instalações
- Para manter posições necessárias ao cumprimento de sua missão
- Contra “atos ameaçadores”, tais como apontar arma de fogo para um militar, realizar disparos (mesmo que para o alto), bloquear passagens com veículos, portar ostensivamente ou não armas de fogo (a uma distância que a tropa possa ser atingida), detonar artefatos explosivos, acender coquetel Molotov, entre outras
Como deve ser esse uso da força?
As regras de engajamento dizem que a força só pode ser utilizada quando outras ações “estejam esgotadas ou não forem possíveis”.
Ou seja, sempre que for possível, antes de usá-la, os militares devem adotar medidas de dissuasão, como por exemplo mostrar que possuem superioridade numérica e de armamentos para fazer os criminosos desistirem de resistir à tomada de uma favela.
E, se o uso da força for inevitável, ele deve ocorrer de forma progressiva e proporcional à ação do criminoso. De preferência, deve começar com a mínima intensidade para não provocar ferimentos, segundo o "manual" de GLO.
Como o armamento deve ser usado?
O militar deve dar preferência ao uso de armas de baixa letalidade. Ou seja, armas de menor calibre ou não letais.
Durante as operações, as armas têm que ter projéteis no carregador, mas elas devem permanecer sem a chamada “bala na agulha” e sempre travadas. Em situações de confronto iminente, o comandante poderá dar a ordem para que as armas sejam preparadas para uso imediato.
As tropas só poderão atirar sob ordem do comandante ou em legítima defesa e o ataque deve obedecer algumas regras:
- Se possível, antes de atirar no suspeito, o militar deve dar um tiro de advertência perto dele
- Só se pode atirar em criminosos claramente identificados (não atirar às cegas)
- É preciso tentar ferir e não matar o criminoso, se possível disparando em suas pernas. Se ele estiver em um carro, mirar nos pneus
- O militar deve tomar todas as precauções razoáveis para não ferir terceiros
- O soldado deve disparar somente o necessário e evitar disparos em rajadas --que só devem ser utilizadas em situações específicas e em áreas não habitadas
Os militares podem prender suspeitos ou apreender armas ou drogas?
Os militares das Forças Armadas participam das operações de segurança pública acompanhados de membros das polícias Civil, Militar, Rodoviária Federal e da Força Nacional. Assim, na prática, um grupo misto de policiais e militares podem perseguir um suspeito, mas quem vai colocar as algemas será um policial.
Os militares também podem deter suspeitos, sem policiais, se eles forem pegos em flagrante cometendo crimes tipificados na legislação brasileira. O mesmo acontece com apreensão de armas ou drogas, mas suspeitos e materiais ilícitos têm que ser imediatamente entregues à Polícia Civil.
Segundo as regras de engajamento, a prisão ou apreensão também deve ser imediatamente comunicada ao comandante da operação.
Além disso, as normas dizem que ninguém pode ser acusado, preso ou detido em casos que não estejam previstos na lei brasileira em vigor.
As Forças Armadas querem afrouxar essas regras?
O UOL apurou que as Forças Armadas querem ter mais segurança jurídica para agir, mas não querem que as regras de engajamento sejam afrouxadas a ponto de parecerem com as normas usadas em guerras, como as convenções de Genebra, que se inserem no Direito Internacional dos Conflitos Armados.
Em linhas gerais, essas regras internacionais dizem que um suspeito armado poderia ser baleado só por ser de uma facção (ou exército, no caso de guerra convencional), mesmo que não esteja atacando alguém.
Um artigo publicado no Eblog do Exército, em novembro de 2017, antes da intervenção, mas durante a vigência da operação de GLO no Rio, diz que os militares preferem tratar as operações no arcabouço jurídico da segurança pública e não da guerra.
O artigo é assinado pelo coronel Carlos Frederico Gomes Cinelli, atual porta-voz do Comando Conjunto e do Comando Militar do Leste, cujo comandante é o interventor, o general Walter Souza Braga Netto. Cinelli é estudioso do tema e autor do livro "Direito Internacional Humanitário – Ética e Legitimidade no Uso da Força em Conflitos Armados" (Editora Juruá, 2016).
Seu artigo diz que não seria adequado usar elementos do direito de guerra no Rio.
“O que está acontecendo no Rio de Janeiro é uma guerra? Se essa pergunta for feita a qualquer cidadão carioca, ele dirá prontamente que sim, justificando com os fuzis, as munições traçantes no céu, o número de mortos e os tanques em movimento que testemunha todos os dias”, diz o artigo.
Mas o coronel argumenta que, tecnicamente, os choques do crime organizado no Rio com forças de segurança não podem ser comparados a operações de guerra.
“Uma das principais consequências de uma eventual aplicação desse arcabouço privativo de conflitos armados é que se estaria falando de imunidade à persecução penal nos casos de morte de indivíduos legalmente engajados nas hostilidades. Ou seja, estaremos falando em seleção de alvos baseada no 'status' de um indivíduo, e não no emprego de violência armada legítima em resposta à ação hostil dele advinda [legítima defesa]”.
Em outras palavras, o militar não seria processado por eventualmente matar um criminoso. Mas o suspeito também não poderia ser responsabilizado por matar um militar.
Questionado nesta terça (27) se as regras atuais usadas pelas Forças Armadas na intervenção do Rio deveriam ser mudadas, o interventor, general Walter Souza Braga Netto, disse que elas podem se aperfeiçoadas ao longo do processo.
“As regras não mudam, mas podem ser aperfeiçoadas”, disse o interventor.
Os militares podem fotografar moradores em saídas de favelas?
A medida é polêmica e não há uma resposta única.
Segundo o CML (Comando Militar do Leste), o procedimento tem origem policial e embasamento legal. Serviria para agilizar o confronto dos dados pessoais dos moradores com os arquivos da Secretaria de Segurança Pública. A ideia é achar procurados da Justiça. Os dados de cidadãos comuns são depois deletados, segundo o CML.
De acordo com os militares, seria preciso fotografar a pessoa e seu documento porque muitas vezes as fotos de documentos de identificação são velhas e não correspondem à aparência atual de seus donos.
Mas a OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro), a Defensoria Pública e ativistas de direitos humanos criticaram a medida. Para eles, a ação fere garantias constitucionais e afeta o direito de ir e vir das pessoas, pois elas só poderiam sair da região da operação após se identificar.
A OAB-RJ classificou o procedimento como "fichamento" e afirmou que enviará um ofício ao interventor cobrando explicações.
Serão usados mandados coletivos de busca e apreensão?
Novamente, não há uma só interpretação sobre o assunto.
Os mandados coletivos são a autorização judicial para que sejam feitas buscas não em apenas uma residência, mas em toda uma área.
As forças de segurança dizem que eles são necessários porque em favelas é muito difícil identificar casas específicas e os criminosos transitam facilmente de uma para outra.
Por um lado, a medida facilitaria a localização de procurados e armas ilegais. Por outro, poderia causar constrangimento e violar direitos de cidadãos inocentes que tivessem suas casas invadidas.
O governo disse inicialmente querer apoio do Judiciário para obter os mandados coletivos, mas sofreu críticas. Depois afirmou que seriam mandados de busca direcionados, mas com múltiplos locais investigados.
No Judiciário, os magistrados se dividem sobre o tema e não está claro se o desejo do governo será atendido.
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