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Falta de supervisão torna PMs do Rio mais violentos e corruptos, diz pesquisadora

José Lucena/Estadão Conteúdo
Imagem: José Lucena/Estadão Conteúdo

Wellington Ramalhoso

Do UOL, em São Paulo

10/04/2018 04h00

Um estudo inédito sobre a Polícia Militar do Rio de Janeiro mostra que a falta de preparo dos soldados é uma das principais causas da violência da corporação. Responsável pela pesquisa, a major da reserva Tânia Pinc procurou estudar as causas da letalidade policial e identificou problemas de organização, como a falta de supervisão do PM que está nas ruas.

A pesquisa “Por que Policiais Matam? Um Estudo Comparado entre São Paulo e Rio de Janeiro” foi concluída no fim de 2016 no Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e é o trabalho de pós-doutorado da major. O estudo contou com o apoio do Ministério da Justiça e do Pnud (Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento).

“A ausência de supervisão aumenta a probabilidade de falhas operacionais e de comportamentos antiéticos, como o uso excessivo da força e corrupção”, afirma a pesquisadora, que teve contato direto com policiais envolvidos em episódios de violência.

Tânia Pinc trabalhou por 25 anos na Polícia Militar de São Paulo e enveredou para o meio acadêmico. Fez mestrado e doutorado em ciência política na USP (Universidade de São Paulo), tendo sempre a polícia como objeto de estudo. Atualmente, ela trabalha no Instituto Igarapé, onde coordena estudos sobre segurança pública.

Confira abaixo a entrevista concedida por e-mail pela pesquisadora.

UOL - Por que os policiais militares do Rio matam?
Tânia Pinc - Policiais militares do Rio de Janeiro matam muito mais do que a média nacional. A letalidade policial no Rio de Janeiro é derivada de dois principais fatores: a reação armada das facções criminosas (quer no morro, quer no asfalto, a primeira reação de criminosos no encontro com a polícia é atirar); e a falta de preparo para a tomada de decisão pelo uso da arma de fogo. Note-se que ambos fatores são externos; o primeiro está no nível situacional e o outro, no organizacional.

A Polícia Militar do Rio tem características únicas no país?
Eu diria que o Rio de Janeiro tem características singulares, que associa um contexto urbano altamente violento, em que territórios são ocupados e disputados por grupos criminosos armados de fuzis, com uma organização policial com sérios problemas estruturais que afetam o preparo profissional, comprometendo a capacidade de resposta ao crime, e criam oportunidades para que a corrupção prolifere.

Quais os perfis dos policiais que matam?
Na pesquisa que desenvolvi em 2016 com a Polícia Militar do Rio, não foi possível classificar uma tipologia de perfis, como fiz na Polícia Militar de São Paulo. No entanto, identifiquei cinco padrões de conduta no que diz respeito ao uso da força letal, que faz sentido apenas quando levamos em conta que policiais acreditam que no Rio de Janeiro existe um certo “estado de guerra”:

1) Guerreiros: são aqueles policiais que atuam nas áreas de alto risco, ou seja, nas zonas de guerra. A tendência é a de que o uso da arma de fogo seja uma rotina, o que significa que em quase todos os dias de serviço trocam tiros com criminosos. Eles convivem com a morte muito de perto e se pautam pela lógica do “antes ele do que eu”. Para esses, o criminoso é o inimigo que precisa ser abatido, caso contrário, o guerreiro pagará com a própria vida.

2) Sobreviventes: são os policiais que conseguiram deixar a zona de guerra, mas continuam no policiamento, geralmente na atividade de radiopatrulha, muitas vezes em uma área que não concentra taxa elevada de crime violento. Contudo, quando eles se deparam com alguma situação de risco de morte, mesmo sendo possível prender, é muito provável que escolham por matar, pois continuarão seguindo a orientação anterior.

3) Aprendizes de Guerreiro: geralmente são policiais em início de carreira, que acreditam que devem pegar o criminoso a qualquer custo, nem que para isso seja preciso matar.

4) Descomprometidos: são aqueles policiais que trabalham no policiamento, mas preferem manter distância de situações de risco; porém, por vezes são “atropelados” por elas e têm que responder. A resposta mais usual é a força letal em função do deficit de preparo.

5) Vocacionados: esses acreditam que têm um papel a cumprir perante a sociedade e farão o que estiver ao seu alcance para prender criminosos. Eles buscam enfrentar o risco, porém, acabam se expondo ao risco em função do preparo deficiente e matam mais como uma estratégia de defesa.

Essa análise é resultante de uma pesquisa exploratória, portanto, esses padrões de conduta não são conclusivos. É muito provável que em qualquer organização policial haja candidatos a ingresso que tenham a predisposição de matar criminosos, eles são provenientes da sociedade que fomenta essa ideia. No entanto, quando o processo seletivo é sério, existe alta probabilidade de identificar esses candidatos no exame psicológico.

Os policiais militares se sentem pressionados a ter um comportamento violento e letal? Como e por quem essa pressão é exercida?
Essa pressão existe e é exercida por parte da sociedade e também por parte do meio policial. Isso pode influenciar a tomada de decisão do policial pelo uso da força letal, quando essa não é a melhor escolha.

O investimento no preparo profissional, o que inclui a definição de parâmetros organizacionais claros pautados em princípios democráticos, pode aumentar a capacidade de o policial tomar a decisão correta, principalmente, porque alcançará a consciência de que os prejuízos decorrentes afetam ele e sua família, e não os grupos de pressão

É possível afirmar que a letalidade policial não resolve o problema da segurança pública?
Certamente, não resolve.

O principal desafio para os governos e polícias é enfrentar a violência urbana sem usar a força letal. Diante de uma situação de risco, o melhor resultado é a prisão do criminoso. Caso isso não seja possível, é melhor deixar fugir do que ferir ou matar.

O policial é autorizado a usar a arma de fogo. No entanto, isso não pode ser feito em qualquer situação. Não é porque o criminoso atira primeiro ou aponta a arma de fogo, que esse é o sinal verde para o policial disparar. É necessário analisar o contexto em que esse encontro está ocorrendo, em especial, se existem outras pessoas na linha de tiro. Nesse sentido, quando a arma empregada é o fuzil, a linha de tiro é muito mais ampla do quando se usa uma pistola ou revólver.

Contudo, é importante ressaltar que a falta de preparo dos policiais em controlar o risco adotando posturas seguras faz com que muitas vezes a exposição do risco aumente, ou seja, policiais ficam mais vulneráveis quando não adotam protocolos de segurança. Sendo assim, é muito provável que nessas circunstâncias, policiais usem a arma de fogo para sua própria defesa e deixem de considerar a possibilidade de atingir terceiros.

Bope Rio - Wilton Junior/Estadão Conteúdo - Wilton Junior/Estadão Conteúdo
Imagem: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

O que é necessário fazer para diminuir a letalidade da polícia do Rio?
A resposta para esse problema deve levar em conta três perspectivas. A primeira e mais urgente é a intervenção no nível individual, que é preparar o policial a adotar o Método de Resposta ao Risco, que é uma estratégia que provoca o policial a buscar escolhas racionais diante do risco de morte, levando em conta o conhecimento de que dispõe e a situação que enfrenta. Essa abordagem é praticamente um atendimento de socorro ao policial de rua, que tem um custo muito baixo, mas que pode ter benefícios significativos a curto prazo. No entanto, não é suficiente para alcançar e manter um nível razoável.

A segunda perspectiva está voltada para o nível organizacional. Nesse ponto, sou pouco otimista em razão dos problemas estruturais da Polícia Militar do Rio. Qualquer coisa que se faça em uma organização que possui muitos deficits, pode gerar mudanças positivas, no entanto, falta à administração e gestão policial liderança e capacidade suficiente para levar à frente um projeto de reforma administrativa. Nesse sentido, entendo que a intervenção do governo federal por meio do Exército pode representar uma vantagem no sentido de condução das mudanças necessárias.

Por fim, a terceira perspectiva muda o foco para o contexto de violência urbana. Em 2016, uma das recomendações da minha pesquisa foi a militarização do enfrentamento ao crime no Rio de Janeiro, não por considerar as Forças Armadas mais eficientes do que as polícias estaduais, mas por entender que os problemas de segurança no Rio extrapolam a natureza do papel policial. Mesmo se a polícia do Rio de Janeiro fosse o melhor modelo de eficiência no Brasil, do meu ponto de vista, não seria a organização competente para controlar o problema do crime organizado, porque os grupos vêm adotando táticas de guerrilha urbana e armamento de guerra.

O policial militar do Rio conta com supervisão quando está na rua? Por que a supervisão é importante?
O policial de rua se depara com uma grande variedade de problemas todos os dias, a maior parte deles não está relacionada ao crime. No entanto, afetam em alguma medida a tranquilidade e a segurança das pessoas que esperam que a polícia possa ajudá-los. Por mais experiente que seja, o policial não conhece a resposta para todos os problemas, pois muitas situações novas surgem todos os dias. O supervisor é a pessoa que vai suprir essa lacuna de conhecimento ou corrigir uma conduta não apropriada.

No policiamento de rua existem ao menos dois níveis de supervisão. Nas polícias militares do Brasil, o primeiro nível é o sargento e o outro o tenente que, em tese, são profissionais preparados para assumir essa posição. Tanto o sargento como o tenente devem estar nas ruas, acompanhando e monitorando as atividades de rotina dos policiais. Essa é uma prática que também pode ser encontrada em polícias de outros países.

A Polícia Militar do Rio praticamente eliminou a supervisão de rua. Uma política de pessoal, criada há décadas, passou a promover compulsoriamente todas as praças a cada cinco anos, de forma que hoje existem mais sargentos e subtenentes do que cabos e soldados. É muito comum encontrarmos uma viatura com dois sargentos patrulhando as ruas do Rio de Janeiro. Eles desempenham muito mais o papel de patrulheiro, porque não foram capacitados para serem supervisores. Quanto à supervisão do tenente, esse acumula atividade administrativa e tende a permanecer a maior parte do tempo no quartel, o que também contraria tudo o que conhecemos sobre o trabalho operacional do tenente.

A ausência de supervisão aumenta a probabilidade de falhas operacionais e de comportamentos antiéticos, como o uso excessivo da força e corrupção

O treinamento dado aos policiais militares tem falhas?
Na Polícia Militar do Rio, o maior problema é a ausência de treinamento. De maneira geral, as polícias enfrentam problemas para introduzir o treinamento na atividade operacional, porque nem sempre têm efetivo suficiente para o policiamento. Quando alguém é enviado para o treinamento é uma viatura que deixa de patrulhar. Os comandantes ainda não percebem o treinamento como investimento, mas isso é um fato que não está restrito ao Rio de Janeiro, é um problema característico de polícia.

No Rio, o problema é mais grave, porque a grande parte dos policiais recebem treinamento apenas no momento em que ingressam na PM. Em 2016, o comando da polícia iniciou um novo programa de treinamento com o propósito de controlar o uso da força, inclusive da arma de fogo. Esse tem sido um trabalho muito interessante, mas que sofre uma série de resistências internas e que ainda está muito aquém de atender a real necessidade. Todavia, reconheço que é uma iniciativa que tem valor e potencial para ser redimensionada e aprimorada.

Também há uma grande quantidade de PMs assassinados no Rio. Por que policiais militares do Rio são assassinados? Qual é a relação com os assassinatos cometidos por eles?
Quando menciono o despreparo dos policiais para enfrentar situações de risco de morte, destacando o fato de que nem sempre adotam condutas seguras e aumentam sua exposição ao risco, também considero esse um dos principais fatores que provoca a morte de policiais.

No entanto, temos que considerar que a maior parte dos policiais assassinados é fora de serviço. Essa é uma circunstância em que o policial não conta com o aparato da organização: está sozinho, sem comunicação por rádio e sem equipamento de proteção individual. Além disso, costuma estar armado e alguns ainda portam a identidade funcional. A princípio, o criminoso aborda para roubar, mas acaba identificando sua condição de policial e mata.

Não há uma resposta simples para esse caso. Desarmar o policial fora de serviço ainda é um tema tabu. Existe um grande espaço para o governo e a organização policial discutir internamente esse problema e buscar uma resposta razoável, no entanto, não observamos nenhuma iniciativa nesse sentido.

O policial militar do Rio é mais guerreiro ou mais sobrevivente? Os policiais e a sociedade devem aceitar estes dois caminhos como os únicos possíveis?
Minha pesquisa não criou medidas acerca desses padrões de conduta.

O que posso afirmar é que o policial militar no Rio de Janeiro está como um soldado enviado para guerra com os olhos vendados

Existe um grande vazio organizacional e governamental que transfere a responsabilidade da tomada de decisão para quem está na ponta da linha, que vem enfrentando os problemas pela sua própria conta e risco. Parcela deles se aproveita para tirar vantagem pessoal, mas ainda existe um grande grupo que gostaria de fazer certo, mas não tem suporte.

Caveirão Rio - Luiz Souza/Estadão Conteúdo - Luiz Souza/Estadão Conteúdo
Imagem: Luiz Souza/Estadão Conteúdo

Como surgiram os problemas de organização da Polícia Militar do Rio?
A história da Polícia Militar do Rio não é diferente da conjuntura política do Rio. Por um lado, existe a leniência ou negligência de vários governos estaduais e municipais com a segurança dos cidadãos e com os órgãos de segurança pública, além da ausência de posição mais firme dos comandantes. Por outro, um conjunto de políticas públicas que foram sendo implementadas ao longo das últimas décadas com o propósito ou de desviar o foco ou postergar a solução dos problemas, que foram agravando a situação e essas péssimas decisões causaram impacto no contexto atual.

No que diz respeito à estrutura organizacional da Polícia Militar do Rio, existem tantos 'remendos' malfeitos que acredito que a própria organização não seja mais capaz de conduzir uma reforma administrativa

Ela deveria partir do governo estadual, que assumiu sua incapacidade de governança. Talvez a intervenção federal conduzida pelo Exército tenha condições de realizar esse conjunto de mudanças necessárias que provavelmente irão desagradar a muitos policiais. Porém, não sei se há interesse por parte deles.

A sra. acredita que a intervenção federal na Segurança Pública do Rio pode melhorar a organização da PM?
A Polícia Militar precisa de uma medida radical para poder sobreviver e alcançar o mínimo de eficiência nos serviços. A intervenção federal é uma medida radical, mas não posso dizer que irá funcionar. No entanto, o Exército tem toda a capacidade de identificar os problemas estruturais na Polícia Militar porque no Brasil essa organização policial ainda tem uma estrutura muito semelhante à do Exército.

Por exemplo, a lógica dos dois níveis de supervisão --sargento e tenente-- também é um pressuposto empregado pelo Exército. Outro fator que afeta negativamente o desempenho da PM é a falta de uniformidade na escala de serviço. Cada batalhão estabelece o turno de serviço que mais lhe convém; é comum o horário de 24 horas de serviço por 72 de folga. O propósito é dar espaço para que o policial possa ter alguma atividade remunerada extra corporação, porque os salários são baixíssimos e estão atrasados. Mas é no mínimo ingênuo esperar que um policial possa patrulhar as ruas durante 24 horas com eficiência. O Exército tem toda expertise para fazer um diagnóstico preciso de todos esses problemas administrativos e de gestão, mas isso não é suficiente, seria necessário vontade política e tempo razoável, pois são intervenções que devem ocorrer a longo prazo.

O que leva um PM a se tornar um miliciano? Que problemas a existência de milícias traz para a PM do Rio?
A participação de policiais militares nas milícias é uma evidência da falta de capacidade do nível executivo da Polícia Militar do Rio em controlar comportamentos desviantes de seus membros. O poder administrativo disciplinar é um recurso importante para depuração interna, pois permite demitir ou expulsar da corporação policiais que cometem infrações disciplinares graves, que nem sempre configuram crime.

A atividade cotidiana expõe o policial ao contato com criminosos. A escolha da maior parte deles em “mudar de lado” está muito relacionada à impunidade, pois os fatos demonstram que as chances de serem pegos e punidos são baixas. Portanto, é uma escolha lucrativa para aqueles que decidem assumir o risco.

As milícias também representam grupos criminosos, mas podem ter uma dinâmica diferente das facções no “mercado do crime”.

A participação de policiais torna mais complexo o enfrentamento das milícias. Caso não haja uma resposta séria por parte dos governos, a tendência é que a situação piore cada vez mais

Que modelo de polícia precisamos ter no Brasil?
O problema da segurança pública no Brasil não será resolvido com a reforma do modelo de polícia. Enquanto não houver vontade política dos governantes --prefeitos, governadores e presidente-- em cumprir sua obrigação de prover segurança aos cidadãos, continuaremos vendo canhões de guerra fazendo parte da paisagem urbana e ouvindo tiros de fuzil em qualquer bairro da cidade. Portanto, a segurança não se reduz a um problema de polícia, embora seja a isso o que o debate no Brasil tem sido reduzido.