Sem saída, entregadores ficam entre a covid-19 e o bloqueio dos aplicativos
Dados divulgados pelo governo de São Paulo mostram que as mortes de motoboys quase dobraram em relação aos últimos dois meses de março: foram 39 contra 21 e 22, em 2019 e 2018 respectivamente. Segundo o presidente da AMABR (Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil), Edgar Francisco de Silva, o aumento está relacionado ao maior número de entregadores na rua —e ao aumento expressivo das entregas nos últimos meses, devido à pandemia.
Segundo o presidente da associação, não existem dados precisos a respeito do número de colaboradores contaminados pelo novo coronavírus. "Entre os nossos associados, apenas um nos procurou para avisar. Ele está internado no hospital de campanha do Anhembi. Outros comentaram que tiveram sintomas, mas não fizeram o teste. Quando você é entregador, as empresas não ficam sabendo se você está doente ou não; o profissional apenas para de trabalhar, não precisa dar justificativa", conta.
Ainda assim, acredita que o número de contaminados é grande. "As empresas fazem propaganda do delivery como se o entregador fosse imortal. Houve um aumento enorme nas entregas, mas não há preocupação com a saúde desses caras. Agora, nós, da associação, estamos pedindo às empresas que, além de distribuírem mais EPIs, contratem um infectologista para gravar um vídeo explicando, de forma detalhada, como os entregadores podem se proteger em todos os momentos do dia. Ao saírem de casa, na rua e ao voltarem", afirma.
A reportagem consultou as empresas Rappi, iFood e Uber Eats, que disseram estar fornecendo EPI (equipamento de proteção individual) e assistência para higienizar mochilas de entrega e veículos (veja mais abaixo).
A associação argumenta ainda que o número de entregadores aumentou devido ao desemprego decorrente da pandemia —assim como o número de pedidos, que cresceu. "As pessoas estão trabalhando absurdamente, se expondo e, ainda, ganhando uma miséria. É trabalho escravo, mesmo".
É o caso de Valdir Camargo, de 29 anos: após trabalhar 12 horas por dia todos os dias, em duas semanas ele ganhou R$ 300. "Não consegui pegar as máscaras que o iFood liberou, tinha que passar em um lugar específico para retirar e era bastante longe para mim. Eu trabalho de bicicleta. Agora, preciso pagar as contas, ficar em casa não dá. Se eu paro, não tem sobrevivência em casa e a gente morre de outra forma", diz.
Andar com fome carregando comida
"Não recebi álcool em gel de nenhuma das empresas para as quais trabalho, nem mesmo mensagens dizendo que eu poderia retirar o produto em algum lugar. A gente passa fome. Você imagina a tortura que é andar com fome carregando comida nas costas?", questiona Paulo Roberto da Silva, 31 anos, que trabalha como motoboy há nove meses.
Paulo fez um vídeo denunciando o descaso de empresas de entrega de comida em relação à covid-19. A publicação completou um mês e ele foi bloqueado pelas três companhias —Rappi, iFood e Uber Eats.
A renda como entregador é a única responsável pelo sustento dele e da família —ele mora com a mulher, a filha e a sogra. "Desde que fui bloqueado pelos aplicativos, minha única fonte de renda são os R$ 600 de auxílio emergencial", diz.
Paulo mobilizou colegas e fundou a associação "Entregadores Antifascistas", cujo intuito é criar uma rede de apoio aos profissionais de entrega.
Motoboys apelam a manifestações e abaixo-assinado
O vídeo viralizou e, em entrevista ao UOL, ele conta que conseguiu criar um abaixo-assinado que pede às empresas alimentação, EPIs e equipamentos de segurança aos motoboys. O documento já tem quase 300 mil assinaturas.
Na sexta-feira (5), membros do grupo fizeram uma manifestação por direitos e segurança dos entregadores na avenida Paulista, em São Paulo. "Ainda está difícil convencer o trabalhador de que ele pode lutar pelos direitos, uma vez que ele tem medo de sofrer represálias por parte da empresa e ficar sem trabalhar", afirma Paulo.
"Antes da pandemia, já vivíamos um pandemônio, e o coronavírus só escancarou a nossa realidade, intensificou o que já estava doendo. E pior: reforçou o preconceito contra a gente, porque as empresas criaram a "entrega sem contato físico" e isso gera um estigma de que somos um vírus ambulante, que nós levamos o vírus para as pessoas em casa".
Antes enfrentar a covid-19 do que um bloqueio no app
Silvio Junior, de 20 anos, trabalha desde os 17 fazendo entregas. Ele conta que costumava participar dos atos, mas parou quando começou a ser bloqueado com frequência pelos aplicativos.
A cada bloqueio, o entregador fica algumas horas sem receber chamados. O medo de contrair o novo coronavírus faz com que ele evite contato com os pais, com quem mora e divide as despesas de casa. "Ouvi sobre colegas que pegaram covid-19 e estou com medo, claro. Mas o que posso fazer? Preciso trabalhar", diz.
O jovem presta serviço para iFood e Rappi. Segundo ele, as empresas entregaram um potinho de álcool em gel e máscara.
"Ainda assim, a segurança é muito pouca. Os motoboys se aglomeram nas filas dos restaurantes, não por culpa deles, mas porque muitos espaços demoram para entregar o pedido. A gente não tem o que fazer a não ser ficar esperando. Se a gente chega em um restaurante que está lotado e cancela o pedido, somos bloqueados e ficamos horas sem trabalhar. É o que tem".
Empresas anunciam ações de apoio
Procurado pelo reportagem, o iFood afirma que distribuiu kits de higiene, criou dois fundos solidários para entregadores isolados por integrar grupo de risco ou apresentar sintomas do coronavírus. A empresa diz ainda que distribuiu 150 mil kits (contendo álcool em gel, máscaras reutilizáveis e materiais informativos), que foram disponibilizados em abril a entregadores cadastrados na empresa.
A Uber Eats afirma que "o motorista ou entregador parceiro diagnosticado com covid-19 ou que fizer parte do grupo de risco poderá solicitar assistência por até 14 dias mediante apresentação de atestado médico solicitando seu isolamento".
A Uber reitera que "parceiros podem solicitar reembolso para itens como álcool em gel e máscaras". Segundo a Uber, foi inaugurado o "primeiro Centro de Higienização voltado a motoristas e entregadores parceiros no Brasil. Localizado em São Paulo, o espaço permite que, em um único local, os parceiros façam limpeza dos veículos e das mochilas de entrega".
A Rappi garante que adotou protocolos de segurança e está comunicando diariamente seu colaboradores para que sigam as orientações de segurança das autoridades antes, durante e depois da entrega. Em nota, a empresa afirma, ainda, que "comprou álcool em gel e máscaras para entregadores parceiros, e está fazendo distribuição intensiva desses itens, assim como os orientando quanto aos procedimentos de uso". A empresa afirma ainda estar fazendo a desinfecção e sanitização de carros, motos, bikes e mochilas.
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