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RJ: Pressionado, prefeito desiste de creche em terreiro do Rei do Candomblé

Manifestação de antigos seguidores do terreiro de Joãozinho da Gomeia, o "Rei do Candomblé" - Arquivo Pessoal/Arlene do Katendê
Manifestação de antigos seguidores do terreiro de Joãozinho da Gomeia, o "Rei do Candomblé" Imagem: Arquivo Pessoal/Arlene do Katendê

Saulo Pereira Guimarães

Colaboração para o UOL, do Rio

27/07/2020 18h35

Após pressão de movimentos sociais, a Prefeitura de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, desistiu de construir uma creche na área onde ficava o terreiro de João da Gomeia, um dos principais nomes do candomblé no Brasil. Diante da repercussão negativa, a prefeitura informou ter desistido da ideia.

Fiéis e outros seguidores da casa sonham com a criação de um centro cultural no local, que está sob análise para tombamento. Enredo de escola de samba e guia espiritual de políticos, embaixadores e celebridades, João da Gomeia foi apelidado de "Rei do Candomblé" pela Rainha da Inglaterra ao ser convidado para sua coroação.

A construção da creche foi anunciada neste mês pelo prefeito Washington Reis (MDB). "Chegamos a ter uma primeira reunião com a prefeitura, mas não houve diálogo e não se chegou a nenhum resultado", disse a mãe de santo Arlene do Katendê, neta espiritual de João. A prefeitura havia se comprometido a conversar em um encontro marcado para quarta (29). Ainda que a reunião esteja mantida, houve uma reviravolta.

Após o UOL entrar em contato, a Prefeitura de Duque de Caxias informou inicialmente que o terreno foi desapropriado em 2001, encontrava-se "abandonado" e receberia "uma creche, com o objetivo de cuidar das crianças da cidade". No fim da tarde da última sexta (24), porém, emitiu novo comunicado informando que trocaria a localização da creche, "atendendo a pedidos dos movimentos sociais".

"O prefeito Washington Reis decidiu alterar o endereço da área situada no terreiro de Joãozinho da
Gomeia para construção da creche. O terreno ainda é da prefeitura e será realizado o cercamento e a limpeza do mesmo a fim de preservá-lo para posteriormente desenvolver futuros projetos", informou a administração municipal, por meio de nota.

Não somos contra a creche nem nunca fomos, mas queremos preservar o terreno por ser um local sagrado para nós. Nossa luta é por nossa memória

Arlene do Katendê, mãe de santo e neta espiritual de João da Gomeia

Conhecida como Terreiro da Gomeia, a "Casa de Candomblé Manso Bantuqueno ngomessa Kat'espero Gomeia da Nação Kongo/Angola" funcionava no nº 360 da rua General Rondon, no bairro Vila Leopoldina, mas foi desativada há 37 anos.

Restos da casa de alvenaria de João são algumas das raras marcas ainda existentes dos tempos de glória do local, totalmente alterado por terraplanagens e outras interferências. Em 2015, arqueólogos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) localizaram fios de contas, cachimbos e outros itens no terreno.

Herdeiros, coletivos afro e MPF na briga

De acordo com Arlene, a ideia do prefeito Washington Reis fez coletivos afros de cultura e outros movimentos sociais se unirem à Comissão da Gomeia na luta pela preservação do espaço. Após o anúncio da creche, o MPF (Ministério Público Federal) solicitou ao prefeito informações sobre o projeto, já que a área está prestes a ser tombada pelo Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural).

O Ministério Público se preocupa primeiro com a decisão unilateral e a declaração da prefeitura de construir uma creche num lugar que tem uma análise de patrimônio histórico, de proteção da memória relacionada a Joãozinho da Gomeia

Julio José Araújo Neto, procurador da República

De acordo com o Inepac, o processo envolvendo o local teve início em junho de 2019. Ainda aguarda análise arquitetônica, mas os trabalhos foram interrompidos devido à pandemia da covid-19. As atividades só devem ser retomadas nos próximos dias. A previsão é de que em breve os papéis sejam enviados para aprovação do governador Wilson Witzel (PSC).

Capa de disco do Rei do Candomblé - Reprodução - Reprodução
Capa de disco do Rei do Candomblé
Imagem: Reprodução

De janeiro a junho, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Rio contabilizou mais de 20 de denúncias de intolerância ligadas a candomblé, umbanda e religiões de matriz africana e duas contra igrejas católicas e evangélicas. A maioria dos casos (81%) se deu na capital e em Niterói, enquanto a Baixada Fluminense respondeu por 14% do total e a Região dos Lagos, por 5%.

O 'Rei do Candomblé'

Nascido em Inhambupe, na Bahia, em 1914, João Alves Torres Filho (ou João da Gomeia) ganhou notoriedade por atender personalidades em seu terreiro e criar uma linha que combina referências das três tradições do candomblé: Angola, Bantu e de Caboclo.

Ele teve contato com a religião aos dez anos de idade, quando sofria de dores de cabeça e tinha sonhos recorrentes com um "homem coberto de penas". A figura foi identificada como o Caboclo Pedra Preta, entidade que ele passou a incorporar. Aos 26 anos, João virou chefe de seu primeiro terreiro ainda em Salvador, na Ladeira da Pedra. Quando a casa foi transferida para rua da Gomeia, ele ganhou o nome pelo qual ficou conhecido.

gomeia - Reprodução - Reprodução
Joãozinho da Gomeia na capa da revista O Cruzeiro
Imagem: Reprodução

Na Bahia, o babalorixá ganhou fama pelos espetáculos de dança afro que protagonizava e serviam como fonte de renda, pois ele não cobrava pelas consultas.

Em 1948, João foi ao Rio para orientar uma filha de santo que montava um terreiro em Bonsucesso. Terminou se estabelecendo no bairro da zona norte carioca e começou a atender artistas, embaixadores, políticos e outros membros da alta sociedade. O terreno em Caxias foi adquirido em 1950 e tinha cultos lotados.

Cauby Peixoto, Dorival Caymmi e Elza Soares eram alguns dos que frequentavam o terreiro. Reza a lenda que Getúlio Vargas e JK também se consultaram com João, embora não haja registros. Encantada com uma apresentação do pai de santo, a rainha da Inglaterra o chamou para sua coroação, em 1952. Segundo Arlene, ela o identificou no convite como "Rei do candomblé", outra alcunha que fez sua fama.

O terreiro era ponto de referência tão importante que uma linha de ônibus da Viação União tinha o seguinte itinerário: "Copacabana x Caxias, via Joãozinho da Gomeia".

Arlene destaca a preocupação social de João como um de seus diferenciais. "Há 50 anos, ele já ajudava as pessoas com cestas básicas, remédios —fosse o necessitado da religião ou não. Para a época, isso era algo esplendoroso", recorda. Hoje, o único memorial em homenagem ao pai de santo funciona na Câmara Municipal de Caxias.

Manter o sagrado vivo

João morreu em 19 de março de 1971, em São Paulo, vítima de um tumor cerebral. À época, o terreno do terreiro estava no nome de sua mãe, Maria Vitorina Torres. De acordo com Arlene, os altos custos de manutenção a fizeram vender a área para pai Gitadê, filho espiritual de João, ainda na década de 1970.

Ele acabou demolindo a estrutura e abandonou o espaço, que acumulou dívidas a ponto de ser desapropriado pela prefeitura em 2001.

Segundo Arlene, a Comissão da Gomeia tentam montar um centro cultural na área há mais de 40 anos. No fim dos anos 1970, o anúncio de um possível tombamento pelo Iphan levou as pessoas a degradarem a casa. Um mal-entendido fez com que elas temessem que as edificações fossem derrubadas. Para preservar alguns objetos, algumas delas levaram até os azulejos embora.

No candomblé, acreditamos na força das energias da natureza. O terreiro é um reduto de energias, uma terra sagrada. Muita gente foi salva e abençoada naquele lugar. Para nós, a energia sagrada está sempre em movimento e é importante preservá-la. Construir um centro cultural fará isso. Vai manter o sagrado vivo

Arlene do Katendê, mãe de santo e neta espiritual de João da Gomeia