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Preocupada com imagem, ditadura via "frente comunista" com ação junto à ONU

Ditadura militar (1964-1985) acompanhava a repercussão no exterior da violência do regime - Kaoru/CPDoc
Ditadura militar (1964-1985) acompanhava a repercussão no exterior da violência do regime Imagem: Kaoru/CPDoc

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

23/08/2020 04h01

Documentos secretos produzidos por órgãos de inteligência da ditadura militar (1964-1985) revelam como o governo procurou abafar notícias no exterior que relatavam denúncias de torturas e desaparecimentos no Brasil durante os anos de mais violentos do regime.

Nos papéis, eles classificam ativistas, religiosos, entidades civis e a imprensa internacional de um complô para "difamação" comandada pelo MCI (movimento comunista internacional) e supostamente liderado por Moscou, que teria influência inclusive na ONU (Organização das Nações Unidas).

O UOL teve acesso a uma série de documentos classificados como confidenciais entre os anos de 1970 e 1976 do governo militar. O material foi analisado pelo historiador e pesquisador Lucas Pedretti. O Ministério da Defesa foi procurado pela reportagem e afirmou que "qualquer avaliação de fatos passados, à luz do presente, portanto, fora do seu contexto histórico, é completamente inadequado, provoca uma distorção da realidade".

"Além disso, os fatos relativos ao período militar já foram objeto da Lei de Anistia, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, razão pela qual o Ministério da Defesa se preocupa e trabalha para melhorar o presente e o futuro do Brasil", completou a pasta.

Em um dos documentos secretos, os militares chegam a reconhecer casos de violência, que classificam como "excessos". Em outros, há reclamações da importância dada em outros países a quem publicava ou endossava os relatos de exilados.

"Os militares estavam muito preocupados. No governo Costa e Silva eles queriam que os americanos parassem de publicar isso na imprensa. Tanto que ele [o presidente] chamou o embaixador dos Estados Unidos para pedir uma ação, mas ele disse que não tinha como controlar isso", afirma o americano e professor de história do Brasil na Brown University, James Green.

Para os militares, a campanha no exterior era parte integrante da "guerra psicológica" planejada pelo MCI, cujo objetivo é contribuir para a derrubada do regime e a implantação de um "Estado marxista-leninista".

Figueiredo orientou governo a ignorar pedidos da Anistia Internacional

Em 30 de outubro de 1972, uma comunicação assinada pelo general João Figueiredo (então secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional) informa o então presidente Emílio Garrastazu Médici que a ONG (Organização Não-Governamental) Anistia Internacional estava voltada ao Brasil e cobrando explicações sobre denúncias de tortura.

O general coloca ainda que os pedidos da entidade não deveriam ser atendidos, e que deveriam ser repassados ao SNI (Serviço Nacional de Informações) para espionagem.

A Anistia, diz o documento, "coloca-se, maciçamente a favor de terroristas e subversivos. O fato é que os pedidos de informações feitos pela Anistia Internacional não devem ser respondidos, uma vez que as mesmas vêm sendo utilizadas com o propósito deliberado de atingir o prestígio internacional do Brasil", diz o documento.

Comunistas nas Nações Unidas

Outro documento, de 31 de outubro de 1974, produzido pelo SNI também aborda a "campanha" promovida então pela Anistia Internacional. Os militares viam uma mudança de rumo de instituições internacionais de direitos humanos, que teriam privilegiado interesses comunistas.

"Inúmeras organizações de nível internacional, fundadas nos anos 40 com fins sociais, evoluíram para uma tendência de 'frente comunista', tornando-se instrumento de propaganda da política externa da União Soviética. Essas organizações, no propósito de acelerar o seu objetivo real, passaram a desenvolver esforços no sentido de captar a simpatia, senão o apoio de organismos internacionais, particularmente o das Nações Unidas."

O historiador Lucas Pedretti classifica como "paranoia" o medo que os militares tinham de uma movimento orquestrado para instalar um regime comunista no Brasil —algo que historiadores afirmam nunca ter sido uma possibilidade.

"Era um governo muito mal informado e com uma mentalidade formada pelo anticomunismo. Pensavam que as denúncias eram parte de uma grande conspiração do movimento comunista internacional com o objetivo era enfraquecer as Forças Armadas para tomar o poder —o que é absolutamente distante da realidade."

Ditadura cogitou propaganda como reação a relatos de tortura, diz historiador

Segundo o doutor em história do Brasil pela USP (Universidade de São Paulo) Carlos Fico, a preocupação dos militares com os danos à imagem do governo foi percebida especialmente após o AI-5 (Ato Institucional nº 5, que cassou várias garantias individuais no país), de 1968.

"O que houve é que, a partir de 1969, com a segunda leva de exilados, havia muitas denúncias no exterior de tortura no brasil. Em geral eram feitas por brasileiros, em países como Estados Unidos (EUA), França. Eram exilados, e isso incomodava muito a ditadura, isso que chamava de campanhas. Houve até a ideia de se fazer propaganda, mas isso não saiu", conta.

Em 1976, o SNI produziu outro documento, direcionado à Presidência da República, sobre as denúncias de tortura do regime militar a presos políticos.

"Não se irá ao ponto de dizer que não tenham ocorridos excessos, o que tem sido observado em todos os países em que as Forças Armadas se viram obrigadas a intervir para dominar a guerrilha urbana e rural, pois nem sempre terá sido possível controlar a ira de um combatente que vê seu companheiro morto ou ferido pela ação covarde de um terrorista que se utilizava de armas escondidas, mesmo após sua prisão ou num simples ato de pedido de documentos de identificação, e aproveitando-se da falta de experiência revelada pelos integrantes dos órgãos de segurança, nas fases iniciais do novo e cruel tipo de luta que se apresentava", afirma.

Para o historiador Lucas Pedretti, um ponto que chama a atenção nos documentos é como havia uma preocupação intensa do governo em frear a divulgação internacional de casos relacionados à tortura, sem se preocupar com os crimes praticados.

"O regime tem uma atuação muito forte, mobiliza recursos, pessoas, seus órgãos para interromper as críticas, mas nunca para impedir os crimes cometidos por seus agentes. Eles querem mesmo é calar esse processo de denúncias", afirma.

Os relatórios também expõem a insatisfação dos militares com entidades tradicionais da sociedade brasileira, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e com bispos da Igreja Católica, em especial na região Nordeste.

Em documento do SNI, também de 1974, uma espionagem feita revela o nome de clérigos brasileiros que seriam ligados ao comunismo e diz que há "facilidade de penetração proporcionada pelo 'status' que [a Igreja] possui junto a organismos internacionais, tem se tornado um dos mais ativos, perigosos e bem sucedidos agentes de difamação da Imagem do Brasil no exterior."