Mapas indicam que ditadura mascarou dados ao retirar indígenas em Itaipu
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Resumo da notícia
- Mapas apontam manipulação sobre presença indígena no Paraná antes da construção da hidrelétrica de Itaipu
- Procurador-geral, Augusto Aras, pediu extinção de ação reparatória à etnia que havia sido ajuizada no STF pela própria PGR
- Histórico de desapropriação tem episódios de aldeias queimadas e grande crescimento urbano na região
Por Thais Lazzeri*, especial para a coluna
Mapas e registros cartográficos inéditos, analisados por Paulo Tavares, professor e pesquisador da UnB (Universidade de Brasília), mostram em detalhes como era a presença indígena na área da usina hidrelétrica de Itaipu, no Paraná, antes das obras e da consequente inundação do local, na década de 1970.
Para Tavares, o sigilo sobre as imagens aponta a intenção da ditadura militar (1964-1985) e órgãos de Estado de aplicar uma "estratégia perversa" para expulsar famílias Avá-Guarani de suas terras e abrir espaço para a usina e para a colonização da área, atropelando a comunidade e sua cultura. Procurado pela reportagem, o Exército informou que não se manifesta em "processos em andamento em outros órgãos".
Os mapas, analisados pelo pesquisador e reunidos no estudo Atlas do Desterro, confirmam a presença de indígenas em 1967, com roçados e ocupação do solo, em Oco'y Jakutinga (onde hoje está construída Itaipu) — fato que os militares tentaram esconder. "A evidência fotográfica é irrefutável", afirma.
O Atlas compõe uma nova leva de documentos feitos a pedido da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que trata de questões relacionadas às comunidades guaranis.
Os novos estudos foram feitos depois que o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu que o STF (Supremo Tribunal Federal) arquivasse a ação de reparação de danos aos Avá-Guarani — pedido que foi acatado pelo ministro Alexandre de Moraes.
A ação, que previa pagamento bilionário (R$ 150 milhões por ano desde a construção da usina) aos indígenas pela reparação dos danos provocados pelo Estado, foi arquivada sem julgamento do mérito.
Para pesquisador, houve intenção de minimizar presença indígena
Órgãos como Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ) e Funai (Fundação Nacional do Índio), além de Itaipu, fizeram registros cartográficos em que mostravam os indígenas em área muito menor do que a que realmente ocupavam. A presença, diz Tavares, nunca foi corretamente registrada em mapas feitos pelo governo militar propositalmente.
Contatados pela reportagem, Incra e Funais afirmaram, através de suas assessorias, que não irão se manifestar.
Itaipu informou, em nota enviada à reportagem, "que não houve violação aos direitos dos povos indígenas com a construção da usina". A empresa afirma ainda que "o reassentamento foi feito de forma rigorosamente legal, cercado de cuidados para preservar todos os direitos dos assentados. A nova área de terras escolhida pela comunidade proporcionou melhores condições de vida (habitação, saúde, educação, alimentação, entre outros)."
Em 1977, por exemplo, a presença indígena é indicada em mapa feito por Itaipu com uma pequena área de ocupação indígena (veja pequena faixa em vermelho), ignorando registros anteriores que afirmavam que as comunidades ancestrais estavam por toda a região.
Imagens de satélite analisadas pelo pesquisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB revelam também o avanço do desmatamento na região de Oco'y Jakutinga entre 1968 e 1978, a ocupação das terras por colonos e posseiros e o consequente 'deslocamento forçado' dos indígenas que ali viviam.
Dodge pediu indenização à etnia; Aras, seu substituto, extinguiu a ação
Augusto Aras pediu a extinção da ação pouco mais de um mês depois de sua posse como procurador-geral da República e cerca de um mês depois de sua antecessora, Raquel Dodge, ter proposto a ação indenizatória à etnia pelas violações sofridas na construção de Itaipu.
Aras foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fora da lista tríplice, que é resultado de eleição entre procuradores e até então o protocolo informal para ascensão ao cargo de procurador-geral.
Segundo entrevista à época, Aras afirmou que o assunto era complexo e que faltavam nos documentos provas da representatividade coletiva. "É difícil listar com exatidão a quantidade de aldeias ou parcialidades que havia no momento exato do alagamento de Itaipu", disse. Procurado, o MPF informou, que uma entrevista com um representante não seria possível e que o inquérito civil público segue em análise.
Para Dodge, no entanto, a vasta documentação já mostrava que a indenização teria que ser dada à etnia. "Por isso, quando ajuizei a ação, entendi que não era nominal, mas em favor dos Guarani", afirmou. "Os indígenas não tiveram acesso à Justiça para ter direito à indenização. Os direitos deles foram sucessivamente negados como povo, comunidade, habitantes e como brasileiros."
Casas e roçados queimados
Além do loteamento feito pelo Incra, há a denúncia de que a empresa Itaipu também esteve diretamente envolvida com a queima de casas e roçados guarani para expulsá-los da área. Fotografias reveladas pela Comissão Nacional da Verdade do Paraná em 2017 mostram funcionários de Itaipu posando em frente a várias casas guarani em chamas.
Estes servidores trabalhavam para o setor jurídico da empresa, que era informalmente conhecido como "diretoria de desapropriações."
Segundo as conclusões da comissão, a queima de casas constitui o "modus operandi" da "diretoria de desapropriações" de Itaipu nas ações de remoção das famílias guarani.
Pela data em que estas fotos foram feitas, em julho de 1981, pode-se assumir que são imagens de Oco'y-Jakutinga, uma das últimas aldeias guaranis que ainda resistia na área que seria inundada.
O cacique Lino Cesar Cunimi Pereira lembra quando a comunidade onde vivia foi alagada por Itaipu. "Eu tinha 7 anos. Lembro de arrancarem a gente de lá à força, de queimarem nossas casas. Era muita queimada. Fizeram muita coisa que não deveria ter acontecido", afirmou à reportagem.
Loteamento de área no Paraná
Muitos guaranis fugiram para o Paraguai, outros foram expulsos e tiveram suas aldeias queimadas. Famílias remanescentes ficaram numa faixa de mata nativa às margens do rio (hoje a Terra Indígena Ocoí).
A colonização e o loteamento do oeste do Paraná, induzida pelo governo brasileiro pelo menos desde a década de 1940, ganhou fôlego em 1971, quando o então presidente Emílio Garrastazu Médici autorizou a expropriação de terras da região de Oco'y-Jakutinga por meio de um programa do Incra de distribuição de lotes a invasores, colonos e famílias indígenas.
Tratar os guarani como "colonos" não-indígenas é, na avaliação do estudo, uma forma de escapar da legislação em vigor — que exigia a devida remoção e demarcação de suas terras — e descaracterizar sua identidade, sua ancestralidade e seu território.
"No decreto, a ditadura ignora a presença de indígenas e aproveita para tentar 'apagar' seus direitos, mesmo que vários órgãos de Estado tivessem ciência sobre a presença indígena nesta área há décadas", escreve o pesquisador.
"Invasores em suas próprias terras"
"A distribuição [de lotes] aos indígenas como se estes fossem colonos enquadrava estas comunidades como invasores em suas próprias terras, alheios aos territórios que lhes pertenciam desde tempos imemoriais", afirma Tavares.
O pesquisador avalia que o problema do loteamento da área indígena é não só considerá-los como invasores de seus próprios territórios, mas também a desconfiguração identitária sofrida por eles — que passaram a ter propriedade privada — em detrimento das áreas e da cultura da coletividade.
Daí a característica "perversa" citada pelo pesquisador. Ao final do processo de expulsão dos Avá-Guarani, a área demarcada como terra indígena em 1982 foi de 250 hectares — ante a demanda inicial de 1.500, que hoje pode ser vista rodeada de lotes no mapa abaixo.
Ministério Público aponta violações contra os indígenas
A demora de resposta do MPF pode ter um custo elevado aos Avá-Guarani, que há décadas sobrevivem em condições de vulnerabilidade — custo que deve ser amplificado pela pandemia.
"Isso mostra como a realidade impunha necessária urgência desta ação [de indenização]. Agora, corremos o risco do perecimento de testemunhas oculares, que viram e sentiram as atrocidades cometidas contra a comunidade", afirma o advogado André Dallagnol, que atua na defesa da comunidade indígena.
A série histórica de violações contra os indígenas é documentada inclusive por investigações do próprio Ministério Público. O último relatório, de abril de 2019, revisou cerca de 200 documentos e confirmou violações de direitos humanos que os ancestrais da comunidade repetem há décadas: famílias separadas, remoções forçadas, cemitérios indígenas destruídos e áreas sagradas inundadas na construção da hidrelétrica.
Reportagem produzida em parceria entre esta coluna e a Repórter Brasil.