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Documentos apontam que regime militar sabia de ataques de grupo de direita

Destroços de explosão em frente à  sede do Dops, em São Paulo, em 1968 - Superior Tribunal Militar/ Integra-JMU
Destroços de explosão em frente à sede do Dops, em São Paulo, em 1968 Imagem: Superior Tribunal Militar/ Integra-JMU

Vasconcelo Quadros *

01/10/2018 20h19

Um relatório do SNI (Serviço Nacional de Informações) de agosto de 1969 indica que a cúpula do regime militar brasileiro sabia de atentados que um grupo de direita radical cometia em São Paulo para gerar um ambiente que favorecesse o recrudescimento da ditadura no país. Os ataques a bomba, entre outras ações, iniciaram em 1968 e teriam servido de combustível para o AI-5, ato institucional que deu início a um período de maior censura e perseguição política no Brasil.

Em uma retrospectiva sobre o papel da Força Pública, como era então chamada a Polícia Militar, então com 36 mil homens livres do "micróbio vermelho" e, portanto, "força antirrevolucionária" a favor do regime, um agente diz que o grupo extremista tinha a intenção de levar todo o arsenal dos 350 homens que integravam o antigo departamento da polícia e que a autoria de um atentado ao quartel-general na capital paulista foi encoberta por oficiais graduados da corporação, supostamente mancomunados com as ações paramilitares.

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O agente informa que o soldado Jessé, que classifica como "lugar-tenente" de Aladino Félix, líder das ações do grupo, e os sargentos Rubens Jairo dos Santos e Juarez Nogueira Firmiano, que participaram da maioria dos atentados, chegaram a ser presos no mesmo dia em que o artefato explodiu no QG da Força Pública, em 10 de abril de 1968, destruindo um dos elevadores. Os três foram soltos, frisa o agente do SNI, sem nem sequer serem investigados.

"No dia seguinte ao da explosão, após o término do expediente, o major Edson [Edson Isaac Corrêa] desceu à prisão e os colocou em liberdade por ordem do cel. Vilela [José Vilela dos Santos, então comandante do Estado Maior da Força Pública]. É evidente que tais elementos, se pressionados, iriam revelar o plano e, para que isso não acontecesse, os oficiais tomaram aquela atitude", escreve o agente do SNI.

O responsável pelo inquérito policial-militar (IPM), capitão Cid Benedito Marques, orientado por superiores para "nada investigar", passou então a ouvir pessoas que o agente denomina de "trouxas". O depoimento de Aladino Félix nesse IPM foi só para cumprir tabela: o místico negou que soubesse de qualquer detalhe e foi dispensado com as honras de sempre.

"Referido IPM encontrou sérios obstáculos para nada apurar, somente vindo à tona mais tarde [os atentados], com a descoberta pela Polícia Civil do terrorista Sábado Dinotos [codinome de Félix]", afirma o agente do SNI.

"Será que é cego?"

No IPM da Força Pública, há outras evidências de que, entre os arapongas que integravam os órgãos de informação do governo, as ações do grupo eram um segredo de Polichinelo. A mulher de um dos soldados envolvidos, Alice Moreira, revelou, em depoimento prestado no início de maio, que algumas reuniões de planejamento das ações ocorreram em sua casa.

Bilhete anônimo para IPM - Superior Tribunal Militar/ Integra-JMU - Superior Tribunal Militar/ Integra-JMU
Autor de bilhete anônimo diz que "plano terrorista" estava ligado a Aladino Félix
Imagem: Superior Tribunal Militar/ Integra-JMU

Alice afirma que Aladino Félix sempre estava presente, se apresentava como judeu anticristão e anticomunista, falava de discos voadores, religião -- parte de um proselitismo esotérico que a polícia chamou de "isca dourada" -- e, no que de fato interessava, encerrava suas palestras com um discurso político radical, pregando a destruição de estabelecimentos públicos. Alice diz ter tomado conhecimento, nessas reuniões, de que as armas furtadas estavam com o líder do grupo.

Há, ainda, nos autos do mesmo IPM, outros indícios que jamais poderiam ter sido menosprezados em uma investigação rigorosa: um bilhete que, embora anônimo, já esclarecia, em abril, de onde partiam os atentados.

O autor se dirige ao capitão Cid Benedito Marques e vai ao ponto: "Será que é cego? Onde está a sua experiência de soldado? Não vê que o plano terrorista que se desenvolve em São Paulo está estreitamente ligado ao cidadão Aladino Félix e que os maiores terroristas, seus seguidores, na maior parte, são da Força Pública?", diz o signatário, que se apresenta como amigo secreto do capitão, e assina com o curioso pseudônimo de "Altos Significados". Os quatro meses seguintes seriam marcados por intensos atentados a bomba praticados pelo grupo.

Apontado por Aladino Félix como um dos conspiradores que pretendiam derrubar Costa e Silva, o capitão acabou afastado do IPM. As investigações só seriam retomadas mais tarde por outro oficial, quando o delegado Ruy Prado de Francischi, lotado no 40º DP, em Vila Santa Maria, já havia destrinchado as ações do grupo a partir do roubo ao BMI (Banco Mercantil e Industrial), em agosto de 1968, em Perus, na capital paulista.

Ao concluir seu relatório, no dia 30 de maio do mesmo ano, o capitão Cid apontava "Sábado Dinotos e seus sectários" como suspeitos das ações terroristas, "atividades essas", ele faz questão de destacar, "que já são do conhecimento do 2º Exército, DOPS e Polícia Federal". Não há registro de qualquer procedimento aberto pelos órgãos federais até a prisão do grupo.

"Com um pouco mais de chance, teria o cap. Cid desbaratado ainda no início todo o grupo terrorista e, o que é melhor, teria evitado uma série de atentados terroristas", escreve, em 12 de outubro de 1968, o tenente-coronel Raul Humaitá Villa Nova, no relatório que encerraria o IPM da Força Pública.

Conforme demonstra a cronologia dos episódios relatados nos autos, o grupo surgiu como força paramilitar no final de 1967, executou as primeiras ações em janeiro, intensificou os atentados de abril a agosto e só seria descoberto, por acaso, pelo vínculo com um roubo comum. O caso, como se viu, foi esclarecido com o uso da tortura por um setor da Polícia Civil, o Deic, que reprimia os crimes contra o patrimônio, mas não se vinculava à polícia política.

As investigações deixam claro que, apesar das fortes evidências sobre a autoria dos atentados, grupos de extrema direita agiram com intensidade e desenvoltura até a prisão de Aladino Félix, em 22 de agosto.

O grupo foi investigado durante cinco anos, de 1968 a 1973, em três inquéritos civis (um deles tocado pela Polícia Federal, que não chegou a nenhuma conclusão), dois IPMs, um processo da Segunda Auditoria da Justiça Militar paulista e, ainda, duas apelações, que tramitaram no Supremo Tribunal Militar e, finalmente, no Supremo Tribunal Federal.

* Colaborou Ivan Seixas. Pesquisa iconográfica e edição de imagens Paula Cinquetti