'Vida travada': preso com base em foto, inocente fica até 3 anos na cadeia
Em janeiro de 2014, Douglas Moreira havia terminado o plantão no hospital Pan-Americano, na Tijuca, zona Norte do Rio de janeiro e voltava para casa quando foi preso sob a acusação de roubar um carro em Nova Iguaçu, cidade da Baixada Fluminense a 39 quilômetros dali. Policiais retiraram uma foto do auxiliar de serviços gerais de 26 anos de seu perfil no Facebook e apresentaram à vítima que, equivocadamente, o reconheceu.
Casos como o dele não são isolados. Em relatório, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) apontou que 53 pessoas foram acusadas a partir de reconhecimento fotográfico falho ao longo dos últimos seis anos. Sete a cada 10 são negros (25 eram pardos e 15 pretos) — o documento não informa o gênero dos acusados.
A análise, que levou em conta as 19 varas criminais do Estado e foi compilada entre junho de 2019 e março deste ano, mostra falhas de procedimento da polícia na hora de recorrer ao reconhecimento fotográfico. Em uma situação, a vítima viu imagens, mas não chegou a uma conclusão. Mesmo assim, os policiais prenderam os suspeitos.
Em outro caso, um suspeito foi identificado em uma foto no celular do policial. O homem já havia sido acusado e inocentado outras três vezes. Todas com base em fotografias. Há ainda casos em que a vítima apontou um suspeito em uma ocasião, voltou à delegacia dias depois e indicou outra pessoa.
Para o coordenador de Defesa Criminal da DPRJ, Emanuel Queiroz, responsável pelo relatório, não é raro as vítimas reconhecerem pessoas inocentes como criminosas. Isso pode ser explicado, diz, pela "Psicologia do Testemunho".
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela USP (Universidade de São Paulo), Graziella Ambrósio explica que a percepção da vítima molda sua lembrança dos fatos. "O testemunho de uma pessoa sobre um fato depende de como ela percebeu esse acontecimento e do modo como esse fato pode ser expresso", afirma. Apesar de ser manipulável, diz, um testemunho pode ser verificado por meio de análise psicológica.
"Com 20 anos de carreira, afirmo que esses casos são apenas uma pequena parcela do que acontece rotineiramente nas varas criminais. Um caso que não entrou no documento foi o de um jovem preto retinto que teve 19 anotações criminais por roubo, sendo 14 absolvições. Atualmente ele está preso, mas aguarda liberdade", afirma Queiroz.
O perfil de injustiçados, em sua maioria, é o mesmo: pessoas negras, periféricas, pobres e com baixa escolaridade."
Emanuel Queiroz, defensor público
A DPRJ aponta que, em metade dos casos, os acusados não tinham anotações criminais, como no caso de Moreira. Procurada pelo UOL, a Polícia Militar do Estado do Rio afirmou que as informações desses episódios são de responsabilidade da Polícia Civil, que não respondeu aos questionamentos da reportagem. Se enviado, o posicionamento será incluído neste texto.
Reconhecimento falho se repete
Ao UOL, Moreira conta que ouviu na delegacia que o procurado havia sido descrito como "negro, alto, magro e de cabeça raspada". Preso, o rapaz foi levado ao Complexo Penitenciário de Gericinó, na Zona Oeste. Lá, chegou a apanhar de um agente penitenciário. Só foi solto após 30 dias.
Mesmo após ter sido inocentado, sua foto foi mantida no banco de imagens. Isso o levou a ser preso injustamente de novo por tentativa de homicídio em março de 2015. As vítimas eram policiais.
Quando foi preso pela segunda vez, ocasião em que ficou detido por quase dois meses, Douglas Moreira estava prestando concurso para ser policial militar do Rio e chegou a ser aprovado. Por causa da prisão, não cumpriu as etapas finais e não pôde assumir o posto. Mesmo tendo sido absolvido, ele não recebeu nenhum tipo de indenização. Agora motorista de aplicativo, ele briga na Justiça pela vaga perdida.
Hoje, minha vida está travada e não consigo emprego porque ninguém contrata pessoas com a ficha suja. Só consigo trabalhar na informalidade."
Douglas Moreira
Segundo a DPRJ, apesar de serem 53 as pessoas acusadas injustamente, são 47 os processos considerados falhos porque alguns desses indivíduos foram presos erroneamente mais de uma vez. Um homem chegou a ser apontado equivocadamente como autor de crimes com base em fotografias três vezes. Todos foram absolvidos, mas, em média, ficaram presos por nove meses.
De acordo com o coordenador da DPRJ, muitas acusações injustas poderiam ser evitadas com uma "checagens simples" por parte dos magistrados.
"A juíza não queria que eu fosse solto porque acreditava que era possível me deslocar da Tijuca até Nova Iguaçu em apenas quinze minutos", relata Moreira. O tempo mínimo para realizar o trajeto em transporte público, segundo mapas consultados pela reportagem, é de duas horas.
O rapaz chegou a apresentar os registros do sistema do RioCard, o bilhete eletrônico do transporte público carioca, que provavam que ele estava no ônibus em direção à Pavuna no momento do assalto. Ainda assim, enfrentou a incredulidade.
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