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"Pecha de racista": mulher terá de indenizar denunciado por injúria racial

Ana Theresa Silva, servidora da Defensoria Pública de São Paulo - Divulgação
Ana Theresa Silva, servidora da Defensoria Pública de São Paulo Imagem: Divulgação

Lola Ferreira

Colaboração para o UOL, do Rio

15/01/2021 04h00

Após denunciar um colega por injúria racial, Ana Theresa da Silva foi condenada pela Justiça a pagar a ele R$ 8 mil. O funcionário alegou danos morais por ficar com "pecha de racista" no ambiente de trabalho, mesmo que o inquérito tenha sido arquivado em outubro de 2019, a pedido do Ministério Público e ele não tenha sofrido nenhuma punição, sendo até promovido desde a abertura das investigações.

Servidora da Defensoria Pública de São Paulo desde 2012, Ana Theresa conta já ter ouvido que ali "não era seu lugar". Aos poucos, ela diz ter conquistado o reconhecimento de seus pares e chefes. Tudo mudou, diz, em dezembro de 2015, quando foram admitidas no seu setor pessoas que não a respeitavam. Para ela, o problema era a cor de sua pele.

Eu não podia falar nada, mas tinham as piadas: falavam do meu cabelo, das minhas roupas. Mesmo sendo um ambiente mais casual, eu me preocupava com a aparência. Ia trabalhar de vestido, salto e maquiagem. Até isso era motivo de zombaria. Eu tinha o apelido jocoso de 'a doutora'. Não respeitavam quem eu era."
Ana Theresa da Silva

ana - Divulgação - Divulgação
Ana Theresa Silva, servidora da Defensoria Pública de São Paulo
Imagem: Divulgação

Durante três meses ouviu inúmeras piadas, deboches e tentativas de diminuir seu trabalho, diz. Os colegas evitavam cumprir etapas de processos que envolviam seu trabalho, conta. Com um ambiente de trabalho tão difícil, Silva conta que foi "colocada à disposição" para ser alocada em outro setor, longe dos colegas, mas que, mesmo transferida, não conseguiu se ver livre das situações vexatórias.

Cansada e com medo, vivenciado episódios de depressão, ansiedade e inúmeras crises de choro, Silva foi à 1ª Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo em março de 2016 registrar um boletim de ocorrência contra dois de seus colegas. No inquérito, Silva diz que foi construída uma imagem de "negra raivosa" sobre ela.

Passei muito tempo tendo de almoçar sozinha, isolada. As pessoas tinham medo de serem vistas como alvo também, por estarem próximas a mim. Virei a mulher raivosa, vingativa, que faz o boletim de ocorrência."
Ana Theresa da Silva

Criada em Cosmópolis, interior de São Paulo, Ana diz que nem a mãe, uma mulher simples e com baixa instrução, nem os familiares sabem dos problemas que ela tem enfrentado nos últimos anos. "Eles não poderiam me ajudar, não sabem a proporção que essas coisas têm aqui [na cidade de São Paulo]".

Ao menos três vezes, Silva precisou ser afastada do trabalho por sintomas de ansiedade e depressão e episódio depressivo grave. No início de 2020, passou a tomar medicamentos psiquiátricos como tratamento.

Cheguei a subir em um prédio para me jogar, mas desisti. Sabia que iriam abafar o caso se eu morresse. Quem foi estigmatizada, passou a ter acompanhamento psicológico para se manter viva e viver com medicação controlada fui eu. Ter pensamentos suicidas é um inferno, você não consegue se livrar dessa dor. Eu amava viajar, o sol, estar com amigos. Tiraram tudo isso."
Ana Theresa da Silva, servidora da Defensoria Pública de SP

"Pecha de racista"

Sem saber o endereço dos colegas, ela indicou o local de trabalho de ambos. Assim, a intimação chegou à Defensoria Pública. Em 15 de dezembro do ano passado, a Justiça de São Paulo manteve em segunda instância a condenação de Silva, mas reduziu em R$ 12 mil o valor inicial pedido, de R$ 20 mil. Para Hédio Silva Júnior, advogado da servidora, houve erros jurídicos no processo e não há motivo para condenar alguém por pedir a investigação de ofensas sofridas no ambiente de trabalho. Por tudo isso, ele vai recorrer ao Supremo Tribunal Federal.

Ter sido exposto foi um dos argumentos para o funcionário pedir indenização. O advogado explica que a repartição pública tomaria conhecimento do processo ainda que Ana indicasse o endereço residencial dele. Conforme o artigo 359 do Código Processual Penal, este é o procedimento previsto em lei: "O dia designado para funcionário público comparecer em juízo, como acusado, será notificado assim a ele como ao chefe de sua repartição".

Indicadas por Silva no inquérito, as testemunhas foram convocadas a depor quase três anos após o registro de ocorrência. Disseram que havia algumas brigas no local de trabalho envolvendo Silva e os colegas, mas afirmaram "não saber" se houve as ofensas apontadas pela colega. As que retornaram os contatos do UOL não quiseram dar depoimentos para esta reportagem.

"Como condenar alguém por registrar um boletim de ocorrência? Mesmo que a conclusão fosse que não havia prova alguma, qualquer pessoa tem o direito de denunciar a uma autoridade uma ilegalidade ou um abuso. A condenação da Ana cria um precedente, de que não poderemos jamais reclamar de nada", avalia Silva Júnior.

Na decisão de arquivamento do inquérito, a juíza Tatiana Saes Valverde Ormeleze, do Departamento de Inquéritos Policiais do TJ-SP, não deixa explícito o motivo, mas ressalta que o caso pode ser reaberto com base no artigo 18 do Código de Processo Penal. O dispositivo permite buscar novas provas, mesmo após o arquivamento.

Após analisar o caso a pedido do UOL, o advogado criminalista Djeff Amadeus disse estranhar a indenização por ser baseada em um processo que pode ser reaberto:

O arquivamento por si só não necessariamente implica uma possível indenização em face de quem tenha sido acusado de racismo. Se eventualmente se baseia a indenização no arquivamento, essa decisão é absolutamente equivocada."
Djeff Amadeus, advogado criminalista

No acórdão que define o pagamento da indenização por Silva, o juiz Caio Salvador Filardi, relator do processo, afirma que a notícia de crime racial reforça "eventual pecha de racista eventualmente imputada ao requerente, com o evidente prejuízo a sua moral". O relator afirma que houve "crime grave imputado ao requerente, sem qualquer lastro em provas".

O argumento já havia sido usado pelo juiz Rubens Hideo Arai, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível. O caso chegou a Filardi após Silva ter recorrido da decisão na primeira instância, dizendo que a falta de provas não significa que não houve injúria.

O UOL tentou contato com a defesa do colega de trabalho de Silva, mas não teve retorno das ligações ou mensagens.

Em resposta ao questionamento sobre a condução do inquérito e provas coletadas, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que o caso foi investigado pela 1ª Delegacia de Defesa da Mulher. Foram ouvidas as partes e testemunhas, que, de acordo com a SSP, negaram as ofensas relatadas por Silva em seu registro.

Caso pode desencorajar denúncias de racismo

Hédio Silva Junior argumenta que, antes de recorrer ao Supremo Tribunal Federal, irá pedir novamente explicação sobre arquivamento do inquérito, mas diz que não tem esperança em ser atendido.

"Nenhuma das minhas teses foi aceita, que são: não saber a razão pela qual o inquérito foi arquivado, a Constituição garantir o direito de petição e, principalmente, o precedente. Se cada pessoa que entrar numa delegacia para registrar uma ofensa tiver o seu inquérito arquivado, mas com o acusado podendo ganhar indenização pela abertura de inquérito, quem vai procurar a delegacia?"

A advogada criminalista Juliana Sanches também analisou o caso a pedido do UOL. Para ela, a condução judicial do caso desencoraja outras pessoas a denunciar casos de racismo.

No âmbito do direito brasileiro, explica, há o crime de denunciação caluniosa. Trata-se, porém, de acusar alguém de um crime mesmo sabendo que a pessoa é inocente. Para Sanches, se este fosse o caso, o colega de Ana deveria pedir investigação na esfera criminal, não uma indenização por danos morais.

Djeff Amadeus aproveita o caso para aconselhar denunciantes de crimes mais difíceis de provar, como o racismo, a sempre buscar câmeras, telefones de testemunhas e qualquer documento probatório. De acordo com o advogado, um dos efeitos do racismo estrutural é colocar em dúvida o depoimento inicial de uma vítima nesses casos.

Em nota enviada ao UOL, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo afirmou não poder comentar casos concretos, e pediu publicação na íntegra do texto. Abaixo:

1) A Defensoria Pública de SP possui uma política permanente de prevenção e enfrentamento ao assédio moral, sexual e à discriminação no ambiente de trabalho, acompanhada regularmente por um comitê gestor. Parte dos assentos desse comitê são ocupados por representantes de todas as categorias profissionais, com mandatos fixos.

2) Como parte dessa política, qualquer profissional da Defensoria Pública pode - em caráter voluntário e com total sigilo - buscar apoio do Centro de Apoio e Desenvolvimento Institucional (CADI), vinculado ao Departamento de Recursos Humanos, cuja equipe de atendimento especializado conta com psicólogos/as, para relatar situações problemáticas no ambiente de trabalho e obter o devido apoio e acompanhamento.

3) O canal de apoio descrito se soma também à Corregedoria-Geral da Defensoria Pública, que tem por atribuição legal apurar qualquer relato de falta funcional de profissional da instituição, visando eventual processo disciplinar, e que está sempre aberta para análise de representações.

4) Não é possível comentar qualquer caso concreto, considerando a existência de apurações em andamento e proteções decorrentes de sigilo.