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Pinturas gigantes invadem centro de SP para desenterrar passado de negros

Lateral de prédio no elevado João Goulart, o Minhocão, pintada pela artista Regina Elias da Costa, conhecida como Soberana Ziza - Divulgação/Instagrafite
Lateral de prédio no elevado João Goulart, o Minhocão, pintada pela artista Regina Elias da Costa, conhecida como Soberana Ziza Imagem: Divulgação/Instagrafite

Beatriz Mazzei

Colaboração para o UOL, em São Paulo

25/01/2021 04h00

Artistas estão usando pinturas gigantes nas paredes laterais de prédios da região central de São Paulo para resgatar a história apagada da população negra.

A proposta começou em novembro do ano passado, em comemoração ao Dia da Consciência Negra, mas se estendeu por 2021. Nesta semana, por ocasião do aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro, a cidade ganhará um novo mural.

Envolvida na produção artística de mais de 50 empenas ao longo de nove anos, Marina Bortoluzzi, sócia do hub de arte Instagrafite, afirma que está ocorrendo um movimento, ainda que tardio, para mudar o cenário das artes, incluindo mais artistas negros e obras com temática afro. "Marcas e instituições estão em momento de reparação histórica."

O colar do cemitério esquecido

Quem passa pela Casa do Estudante da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), um prédio de 12 andares no elevado João Goulart, o Minhocão, verá a figura de uma mulher negra pintada na lateral do edifício. Sob um fundo azul, ela tem raízes no lugar dos pés e carrega um colar cheio de significados.

Uma escavação arqueológica feita em 2018 no bairro da Liberdade encontrou um colar de contas azuis de vidro. A bijuteria, comum em religiões de origem africana, foi achada nas imediações do que era o Cemitério dos Aflitos.

Pouco conhecido por quem frequenta o bairro atualmente, o local foi o primeiro cemitério público de São Paulo destinado a populações marginalizadas, dentre elas, muitas pessoas negras. Foi esse vestígio da vida de seus antepassados que inspirou a artista Regina Elias da Costa, conhecida como Soberana Ziza.

Com raízes no chão, é como se a mulher fosse uma árvore. Ela está conectada com a terra, que é a nossa base ancestral. No caso do colar de contas azuis, esse passado estava literalmente enterrado na terra. Assim tudo se conecta. Agora, a mulher carrega o colar próximo ao ventre para dar a ideia de futuro e continuidade. É importante olhar para o passado para buscar um futuro melhor.
Soberana Ziza, artista

O grito pela liberdade

Outra de suas influências é a história da população negra da Liberdade. Nos séculos 18 e 19, o bairro abrigava uma forca e o Pelourinho, tronco onde os negros escravizados eram castigados.

O local passou a ser chamado Liberdade em 1821, quando um grupo de pessoas negras entoou gritos de "Liberdade!" após o soldado negro Francisco José das Chagas, conhecido como Chaguinhas, se libertar da morte pela terceira vez ao arrebentar a corda que envolvia seu pescoço.

Escravo alforriado integrante do serviço militar, algo comum no século 19, Chaguinhas foi condenado à forca pelo crime de liderar uma revolta em Santos (SP) contra a falta de pagamento de salários, conta Guilherme Soares Dias, empresário e sócio da Black Bird Viagem, agência de turismo que promove passeios históricos por bairros de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.

Apesar do clamor popular, o soldado foi morto a pauladas. Como a corda se rompeu inexplicavelmente, o homem ganhou fama de santo popular e teve seu corpo levado para a Capela dos Aflitos, próxima ao cemitério, que passou a receber devotos.

A memória negra das cidades sofreu um apagamento por um sistema colonialista. Essas memórias precisam ressurgir para aprofundarmos a reflexão de que não existirá futuro enquanto não adentrarmos na história do nosso país.
Tainá Lima, artista conhecida como Criola

Inspirada pelo resgate ancestral, ela acaba de inaugurar uma empena no bairro da Liberdade, na rua Vergueiro.

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Lateral de prédio no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, pintada pela artista Tainá Lima, conhecida como Criola
Imagem: Divulgação/Instagrafite

O quilombo no coração do samba

Na pintura, se vê uma mulher negra em cores vibrantes e intensas. O estilo característico de Criola também pode ser visto no mural feito no Minhocão que homenageia o líder sul-africano Nelson Mandela. A arte é assinada em parceria com Diego Mouro, artista de São Bernardo do Campo (SP).

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Pintura que retrata o líder sul-africano Nelson Mandela foi feita por Criola e Diego Mouro na lateral de prédio no Minhocão
Imagem: Divulgação/Instagrafite

Em um trabalho solo, Mouro também embarcou pelo resgate da história negra com uma arte ainda em produção no bairro do Bixiga, que conta com financiamento da Secretaria do Turismo de São Paulo (SMTUR). Além de ser um dos berços do samba no país, o Bixiga abrigou o Saracura, um quilombo urbano estabelecido às margens do Córrego Saracura, que passava por onde hoje é a avenida 9 de Julho.

A imagem concebida por Mouro mostra uma mulher negra estendendo roupa no varal para resgatar o afeto presente em cenas cotidianas.

Busco trazer a nostalgia afetiva e retratar as pessoas que vivem e se fortalecem dentro das comunidades. Ao estender um lençol branco com o escrito 'Saracura', essa mulher preta coloca para secar um passado que foi lavado e, de alguma forma, embranquecido.
Diego Mouro, artista

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Prédio no bairro do Bixiga, no centro de São Paulo, abriga pintura do artista Diego Mouro
Imagem: Reprodução/Google Street View

Grafiteiro desde 1999, o artista e ilustrador Thiago Consp estreia em empenas no centro de São Paulo com uma obra no mesmo prédio que abriga a pintura de Soberana Ziza, a Casa do Estudante.

Ele comparece com uma obra da série "Estudos sobre o Silêncio", sobre jovens negros nascidos na periferia de São Paulo e como adoecem e morrem com a atmosfera hostil. "A pintura reflete o protagonismo do homem negro atuando no reforço da sua própria narrativa e o direito de ser e existir", conta ele.

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Pintura feita pelo artista Thiago Consp na lateral de prédio no Minhocão
Imagem: Divulgação/Instagrafite

As empenas de Ziza e Consp fazem parte do projeto #EstamosVivxs, idealizado pela artista junto da produtora cultural Valéria Motta. Encomendadas pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC), as obras fazem parte da programação do Mês da Consciência Negra, em parceria com o Museu de Arte de Rua. Devido à pandemia, a edição do museu foi especial e buscou promover obras que passassem esperança e alento em meio à dificuldade.

Para o historiador William da Silva, autor do livro "Graffites em Múltiplas Facetas", essas pinturas ajudam a dar outro significado a espaços urbanos.

"Grafites que tratam da negritude dão outro significado à história e mostram que o negro é, foi e será presente nas cidades brasileiras contribuindo para o desenvolvimento e manutenção da nação nos aspectos cultural, social, político e econômico, e não meramente com culinária, dança e religião, como é habitual aparecer nos livros didáticos."

Gosto duvidoso

Em São Paulo, a Lei da Cidade Limpa, de 2006, abriu espaço para as laterais de prédios, antes ocupadas por publicidade, serem ocupadas por grandes murais de arte urbana.

Ainda que precisem de uma série de aprovações civis e governamentais antes de tomarem as empenas de prédios, essas pinturas sofrem com o repúdio. Em Belo Horizonte, uma obra de Criola feita em 2018 corre o risco de ser apagada devido a uma ação judicial movida por um morador do edifício que a abriga. Ele alega que a obra "não é uma simples pintura e, sim, uma decoração de gosto duvidoso".

De 1.365 m², o mural "Híbrida Ancestral - Guardiã Brasileira" mostra uma mulher preta aparando um útero enquanto e circundada por uma cobra coral. A ideia é homenagear os povos originários brasileiros.

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Pintura feita pela artista Tainá Lima, conhecida como Criola, na lateral de prédio em Belo Horizonte e que pode ser apagado devido a ação judicial movida por um morador
Imagem: Divulgação

Na época da realização da arte, o síndico do prédio, o Chiquito Lopes, acionou o conselho consultivo do condomínio, que decidiu deu aval para a obra. Um dos moradores contestou a decisão em carta. Uma assembleia extraordinária foi convocada para discutir o assunto, mas o queixoso não compareceu. A realização da obra foi confirmada pelos 55 condôminos presentes. Em seguida, ele entrou com ação judicial pedindo o apagamento.

Pelo uso do termo "gosto duvidoso", a artista Criola afirma que se trata de um caso de racismo. Em sua rede social no Instagram, ela divulgou um abaixo-assinado contra o apagamento da obra. Até o momento, recebeu o apoio de cerca de 32 mil pessoas.

Para o historiador William da Silva, isso representa uma mudança da opinião das pessoas a respeito de grafites.

"Hoje, ele é bem visto pela sociedade brasileira. Nem sempre foi assim, havia muita crítica negativa, porque o grafite era confundido com pichação. O que vejo neste caso não é um ato contra o grafite, mas, sim, um ato de racismo manifestado contra os negros representados na figura da mulher da imagem", afirma.