Maior programa para armazenar água no sertão tem queda de 94% em seis anos
O número de cisternas construídas no país desabou em 2020 e alcançou o menor patamar desde a criação do programa federal destinado para essas obras, em 2003. Os grandes recipientes são destinados a regiões secas do país, acumulam água da chuva e, em épocas de estiagem, servem também para armazenamento da água fornecida por carros-pipa.
No ano passado, foram construídos apenas 8.310 equipamentos pelo programa Cisternas, do Ministério da Cidadania, o que representa uma queda de 73% em relação a 2019 —quando foram 30.583 equipamentos feitos, o menor número do programa para um ano até então.
Em comparação a 2014, quando o programa atingiu seu maior número de construções (149 mil), essa queda foi de 94,5%. Desde então, o ritmo de obras só caiu nos anos seguintes, até alcançar o recorde negativo em 2020.
Em um período de pandemia, elas são fundamentais para que o sertanejo consiga fazer o isolamento social —sem elas, ele precisa se deslocar quase diariamente para buscar água em poços, açudes ou riachos próximos.
Em julho de 2020, o UOL já antecipava o corte dos recursos destinados ao programa e o pedido de gestores e políticos para que houvesse destino emergencial de verba. Na ocasião, o ministério estimava a construção de 10 mil equipamentos em 2020.
O Programa Cisternas é referência mundial e recebeu prêmios internacionais como o Prêmio Sementes 2009, da ONU (Organização das Nações Unidas), concedido a projetos de países em desenvolvimento feitos em parceria entre organizações não governamentais, comunidades e governos.
Recebeu também o "Future Policy Award" (Política para o Futuro), em 2017, da World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.
Inclui a construção de três tipos de cisternas:
- familiar, para consumo humano, de 16 mil litros;
- de produção;
- escolares (ambas com capacidade para 52 mil litros e uso coletivo).
Ao todo, o programa construiu 1,3 milhão de cisternas dos três modelos nos seus 17 anos de existência, sendo 1,1 milhão delas familiares. Mais de 95% delas estão no semiárido).
Os recursos de construção em 2019 e 2020 são aqueles que vieram de outros anos fiscais e não há nenhum investimento de novos recursos desde o início do governo Bolsonaro.
Alexandre Henrique Pires, coordenador Executivo da ASA (Articulação do Semiárido) --entidade que representa mais de 3.000 associações e movimentos rurais da região e lidera historicamente o processo de construção de cisternas no Nordeste
Fila de espera cresce
Pires lembra que hoje existe uma fila de espera de pelo menos 350 mil famílias somente para cisternas de abastecimento humano, mais 800 mil para produção de alimentos e criação animal.
"Num contexto de pandemia, o que o governo federal está fazendo é uma política genocida, quando deixa de investir no maior programa de segurança hídrica em regiões semiáridas do planeta, e expõe milhares de outras famílias que não têm acesso à água muito mais vulneráveis à contaminação do novo coronavírus. Isso é voltar a cenários que lembram o da década de 1980, quando pouco se olhava para o povo do semiárido", completa.
Uma das pessoas que aguardam uma cisterna é Soneide Mariano, 60, que mora na comunidade quilombola Pau de Leite, em Mirandiba (a 468 km do Recife, no sertão pernambucano).
Aqui na comunidade pego água do poço, mas não é fácil, não tenho cisterna para guardar [a água]. Tenho problema de coluna, não posso pegar peso e fico guardando água da chuva em um tambor que tenho.
Soneide Mariano, que sonha com uma cisterna em Pernambuco
"Mas, quando ele enche, como ontem, é um sacrifício trazer para dentro de casa. Quando não tem chuva, tenho de sair de casa para pegar água", afirma.
Pandemia atrasou, diz governo
Em resposta ao UOL, o Ministério da Cidadania diz que o governo federal "tem adotado as medidas necessárias para garantir as ações voltadas para o acesso à água".
"Sobre a construção de cisternas em 2020, vale lembrar que foi necessário instituir medidas de segurança em decorrência da pandemia do covid-19, o que impactou no volume de entregas no ano", afirma.
Ainda segundo a pasta, em dezembro de 2020, o ministério recebeu crédito extraordinário de R$ 86,3 milhões para "a promoção de ações de acesso à água em escolas públicas rurais na região Norte, muitas delas localizadas em aldeias indígenas". O órgão não cita projetos semelhantes na região Nordeste.
Durante a campanha eleitoral e logo após ser eleito em 2018, Bolsonaro prometeu obras hídricas na região e propôs trazer de Israel tecnologia para dessalinizar água do mar e abastecer o semiárido —sendo que o Brasil já adota tecnologia similar e mais barata há décadas para extrair e tratar água do subsolo do semiárido.
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