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Quem é o grafiteiro que levou arte a muros furados de bala no Jacarezinho

Ricardo Célio Santana, artista de 31 anos (à dir.), à frente de mural pintado no Jacarezinho, no Rio, após ação policial mais letal da história do estado - Divulgação/Lenon Lins (@lenon.há)
Ricardo Célio Santana, artista de 31 anos (à dir.), à frente de mural pintado no Jacarezinho, no Rio, após ação policial mais letal da história do estado Imagem: Divulgação/Lenon Lins (@lenon.há)

Beatriz Mazzei

Colaboração para o UOL, em São Paulo

21/05/2021 04h00

Morador de Guarulhos, na Grande São Paulo, o artista plástico Ricardo Célio Santana não conseguiu ficar parado no sofá ao ver as notícias que vinham do Jacarezinho, zona norte do Rio, em 6 de maio.

Correu para lá e pintou com cores vibrantes uma parede desgastada e perfurada com inúmeras balas. Em algumas horas, o muro ganhou tons de amarelo, azul e rosa, bem diferentes do vermelho visto no sangue deixado nas vielas do bairro naquela data, quando uma operação policial matou 28 pessoas.

De acordo com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a plataforma Fogo Cruzado, esta foi a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro. O colorido das imagens feitas pouco mais de uma semana após os assassinatos poderia, diz o artista, levar mais vida e esperança à região.

Foi um dos momentos mais importantes da minha vida como artista. As crianças do bairro pintaram com a gente. Em contradição ao fim de semana anterior, aquele foi marcado por esse clima de paz. A população ficou bem feliz ao ver aquelas cores depois do cenário triste.
Ricardo Célio Santana, artista plástico

Chocado pela violência que via na TV, Célio, como é conhecido, contatou dois colegas cariocas, Vinicius Morais e Thiago Nascimento, cofundadores do LabJaca, um laboratório de dados criado no Jacarezinho. "Mandei uma mensagem para o Thiago falando que queria pintar um muro bem grande e colorido no Jacarezinho."

Grafites tomam o lugar dos buracos de balas em muros do Jacarezinho

O amigo topou na hora. Dias depois, Célio percorreu de ônibus as seis horas de viagem entre sua cidade e o Rio. Ao chegar, fez a curadoria artística para um "grafitaço" e convidou outros artistas do Rio de Janeiro e até um da República Dominicana para participarem da iniciativa. Ao todo, produziram 30 grafites.

O muro que Célio pintou fica em frente à associação de moradores. Os muitos buracos de bala, alguns de fuzil, são resquício de outros conflitos. No dia 6 de maio, a 230 metros dali, na rua Darci Vargas, duas pessoas morreram. Uma delas chegou a ser vista entrando com vida em um caveirão.

O discurso aparente na superfície desses muros vai além da pura imagem. As cores trazem indícios de esperança num futuro mais justo, em que a população negra não seja mais vítima do fogo cruzado. Trata-se de uma intervenção urbana que abraça a família das vítimas assim como cada pedestre da região. Um carinho em forma de arte plástica.
William da Silva, historiador especialista em arte urbana e grafite

Salas de aula viram galerias de arte

Essa não foi a primeira parede da periferia do Rio de Janeiro a ser pintada por Célio. Dois meses antes da passagem pelo Jacarezinho, ele deu novos ares a uma escola em Manguinhos, bairro vizinho. A pintura faz parte do projeto Voltando à Escola, que leva grafite às salas de aula de escolas públicas.

"A arte de rua está deixando de ser marginalizada e alcançando as galerias, museus e marcas. Então ver essa expressão adentrar à escola é uma conquista. É como se as salas estivessem se tornando galerias de arte", conta.

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Um dos grafites do projeto Voltando à Escola, idealizado pelo artista plástico Ricardo Célio Santana. Na imagem, a escritora Carolina Maria de Jesus
Imagem: Divulgação

O nome do projeto remete à trajetória do artista. Em 2016, Célio voltou ao colégio onde estudou para pintar as salas de aula. Na ocasião, convidou dez grafiteiros da cidade. Ao fim daquele final de semana, uma dezena de classes tinha as paredes repletas de pinturas. Na segunda-feira, elas viraram o grande assunto das crianças.

Voltei à escola mais de dez anos depois e foi uma sensação de nostalgia muito boa. Era um sonho doido pintar as salas onde eu estudei. Eu achava as paredes muito sóbrias e tristes. Queria levar alegria e esperança ao lugar.
Ricardo Célio Santana, artista plástico

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O artista plástico Ricardo Célio Santana em uma das escolas grafitadas no projeto Voltando à Escola
Imagem: Divulgação

Como boa parte dos artistas de rua, Célio começou de forma intuitiva, sem conhecimento técnico. Apenas anos depois estudou para definir conceitos e dar significado ao que produzia.

Em 2015, aprendeu sobre o Color Field Paint ("Campo de Cor"), um estilo de pintura expressionista abstrata da Escola de Nova York. Foi como combinou suas paixões: sua fé em Deus e a arte. A partir daí, passou a apostar em pinturas cheias de linhas e cores, que, para ele, fazem alusão às formas orgânicas e livres das obras divinas da natureza.

Já pintou mais de 40 escolas públicas com o projeto Voltando à Escola. De quebra, revitaliza o espaço de convivência de diretores, professores, alunos e a comunidade, além de levar arte a periferias, que possuem difícil acesso a centros culturais. As instalações são custeadas pelas próprias escolas ou por doações de parceiros.

O que começou como um reencontro com a infância já chegou a escolas de Goiânia, Salvador, Recife, Goiás, Amapá e Rio de Janeiro. "Nosso sonho agora é chegar a todos os estados", conta.

Olhando para trás para seguir em frente

A forma espontânea com a qual Célio cria seus projetos tem a ver com o reconhecimento de suas raízes. Nascido em Santa Rita, na Paraíba, ele se mudou para São Paulo com a família aos três anos. Morou no Jardim Ângela, na zona sul, mas foi em Guarulhos que cresceu e aprendeu sobre coletividade.

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Um dos grafites do projeto Voltando à Escola, idealizado pelo artista plástico Ricardo Célio Santana. Na imagem, o educador brasileiro Paulo Freire
Imagem: Divulgação

Fã de música, principalmente rock, já adorava arte quando garoto. Começou a grafitar aos 14 anos. Nos momentos de lazer, se reunia nas praças do Cecap, bairro guarulhense onde viveu a banda Mamonas Assassinas nos anos 1990. Foi ali que conheceu todos os artistas da região.

Essas memórias o marcam até hoje. Apesar dos planos já confirmados para pintar murais em Nova York e Suíça, um de seus sonhos é presentear a cidade onde cresceu com um festival de artes visuais e urbanas.

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Um dos grafites do projeto Voltando à Escola, idealizado pelo artista plástico Ricardo Célio Santana
Imagem: Divulgação