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Entidade indígena relatou à PF invasões armadas onde Bruno e Dom sumiram

Rio Itaquaí na região da Terra Indígena Vale do Javari, em Atalaia do Norte (AM); - BRUNO KELLY/AMAZÔNIA REAL
Rio Itaquaí na região da Terra Indígena Vale do Javari, em Atalaia do Norte (AM); Imagem: BRUNO KELLY/AMAZÔNIA REAL

Paulo Roberto Netto

do UOL, em Brasília

12/06/2022 17h41Atualizada em 13/06/2022 19h09

Relatórios elaborados pelas equipes de vigilância da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) afirmam que há atuação de invasores, incluindo grupos armados, na região onde hoje estão desaparecidos o jornalista britânico Dom Phillips, do The Guardian, e o indigenista Bruno Araújo Pereira.

Os documentos obtidos pelo UOL foram encaminhados a diversos órgãos de segurança, como a PF (Polícia Federal), o MPF (Ministério Público Federal) e a Funai entre fevereiro e maio deste ano.

O Vale do Javari é a segunda maior terra indígena do Brasil. Localizada na fronteira com o Peru e a Colômbia, com acesso restrito por vias fluviais e aéreas, a região de 85 mil km² (maior que a Áustria) abriga 6.300 indígenas de 26 grupos diferentes, 19 deles isolados.

Dom e Bruno desapareceram em 5 de junho. A suspeita de lideranças indígenas é de que a dupla sumiu enquanto retornava para a cidade de Atalaia do Norte (AM) após visitarem a comunidade ribeirinha de São Gabriel (AM).

Em ofício com data de 12 de abril, enviado à Funai e à Força Nacional de Segurança Pública, a Univaja relata invasões nos rios Ituí e Itaquaí entre 13 de março e 4 de abril.

"Podemos afirmar que a invasão continua intensa e, com a cheia dos rios, quando a floresta é inundada, o aumento do 'ingresso' de infratores foi constatado pela EVU (Equipe de Vigilância da Univaja) em campo e por nós na cidade de Atalaia do Norte. Milhares de tracajás e tartarugas e toneladas de carne de caça e de pirarucu chegaram até a sede municipal", relata o documento.

A rede de informações ainda afirmava que ao menos seis equipes de caçadores em embarcações de médio porte pescavam no interior da terra indígena.

"Algumas delas foram formadas por até 8 integrantes armados, em atividades há mais de 20 dias no interior da TI [terra indígena] e com mais de 900 kg de sal. Os nomes dos integrantes dessas quadrilhas, bem como seus líderes, receptadores, financiadores e métodos de atuação estão sendo repassados à Polícia Federal", afirma o relatório.

Um episódio narrado pelas equipes de vigilância descreve ainda um ataque armado ocorrido em 2 de abril, quando um dos pontos de apoio se deparou com "três pescadores, com camisas no rosto, se evadindo da terra indígena".

São acionados os botes e eles são iluminados com holofotes no meio do rio Itaquaí, nas proximidades do cano do lago do Jaburu. Os infratores reagiram atirando sete vezes com espingarda contra a equipe da EVU, que recua ao ver eles adentrando no igapó na margem esquerda do Itaquaí"
Relatório das equipes de segurança da Univaja

Segundo o documento, a Base de Proteção da Funai foi acionada após a ocorrência, mas não foi autorizada a saída da equipe.

Em reunião com a PF, o MPF e a Univaja, o comandante da Força Nacional de Segurança Pública justificou a medida em razão do "baixo contingente na base naquele momento (2 policiais) e a carência de equipamentos logísticos na embarcação à disposição da Funai, sobretudo holofotes".

Suspeito no desaparecimento é citado no relatório

Embora não identificado pelo nome, o apelido "Pelado" é citado no relatório da Univaja. Segundo o documento, no fim da noite de 3 de abril, quando a equipe de segurança estava finalizando as atividades, foi enviada a informação de que "Pelado", morador da comunidade São Gabriel e de Benjamin Constant, estaria com "outros 4 ou 5 infratores pescando no interior da terra indígena".

"'Pelado' tem sido apontado como um dos autores dos diversos atentados com arma de fogo contra a Base de Proteção da Funai entre 2018 e 2019", diz o relatório.

Um dos suspeitos de envolvimento no sumiço do jornalista e do indigenista, Amarildo da Costa de Oliveira, 41 anos, também é conhecido como "Pelado". Na quinta-feira passada (9), a PF pediu a prisão preventiva dele após encontrar vestígios de sangue em sua lancha, e testemunhas relatarem à Polícia Militar terem visto "Pelado" seguir a embarcação que levava Dom e Bruno.

Onde o indigenista e o jornalista desapareceram - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Embarcações foram mapeadas

Há relatos, ainda, de embarcações de médio e grande porte na região voltadas para a caça e pesca na terra indígena.

Segundo o relatório, foram mapeadas somente em 15 de março cerca de "5 embarcações de grande porte (13 metros, caixa de gelo de 8 toneladas, e carga total de aproximadamente 12 toneladas) nas proximidades da Base de Proteção da Funai na boca do rio Ituí, estando três delas entre a comunidade São Rafael e a base".

Foram mapeados também diversas estradas para embarcações menores, como canoas motorizadas de 9 a 12 metros, com capacidade de carga de até cinco toneladas.

No mesmo dia 15 de março, as equipes de vigilância descrevem que uma embarcação de médio porte conduzida por uma equipe de pesca de um homem conhecido como "Cabôco" conseguiu "sair tranquilamente da terra indígena pelo igapó, entre a Base da Funai e o Lago Jaburu".

"Dois dias depois, centenas de tracajás e tartarugas estavam sendo comercializados em Atalaia do Norte", disse.

Os relatórios das equipes de vigilância foram encaminhados a órgãos de segurança, controle e fiscalização, como a PF, o MPF (Ministério Público Federal) e a Funai.

Em nota, o MPF afirmou que instaurou um procedimento administrativo a partir dos relatórios em novembro do ano passado e, a partir dele, abriu um inquérito policial na semana passada para apurar os crimes praticados por invasores.

"Em novembro de 2021, o MPF realizou missão institucional à região com a Univaja para acompanhar os trabalhos e assegurar que tudo estava sendo realizado conforme as regras. A reunião de apresentação dos resultados das atividades da EVU ao MPF foi realizada em março, após passado o novo período de restrições devido à pandemia, ocasião em que o MPF destacou a importância de haver uma parceria direta com a Polícia Federal e a Força Nacional para que as irregularidades constatadas pela EVU fossem comunicadas e apuradas pelas autoridades competentes", narra a Procuradoria.

O MPF diz ainda que, em maio, realizou missão institucional in loco em Atalaia do Norte, "durante a qual reforçou, entre outros assuntos, a necessidade de trabalho conjunto entre a EVU e as forças policiais para resguardar a segurança dos membros da entidade".

A PF respondeu a reportagem dizendo que informações relacionadas à Operação Javari serão unificadas e expedidas diariamente à imprensa.

Após a publicação da reportagem, a Funai disse na segunda-feira (13) que não é possível "falar em omissão" do governo federal na busca de Dom e Bruno e "muito menos no enfraquecimento da atuação da Funai". "Tais narrativas revelam uma apuração rasa e descontextualizada, que acaba por prejudicar o trabalho das instituições".

Em nota assinada pelo presidente da instituição, Marcelo Xavier, diz que a Funai investiu "quase R$ 10 milhões em ações nos últimos 3 anos" ao falar sobre a atuação do órgão no Vale do Javari. O montante teria sido destinado para ações de fiscalização e coibição de crimes, tais como extração ilegal de madeira, atividade de garimpo e caça e pesca predatórias.

"Cumpre esclarecer que a Funai promove ações permanentes de vigilância, fiscalização e monitoramento de áreas onde vivem indígenas isolados e de recente contato por meio de suas 11 Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), descentralizadas em 29 Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes), que são estruturas localizadas estrategicamente em Terras Indígenas da região da Amazônia Legal. As atividades dessas unidades são conduzidas pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), vinculada à Diretoria de Proteção Territorial (DPT) da fundação", disse.

A Funai disse ainda que o Vale do Javari sofre "com uma série de problemas crônicos, fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira, que em governos anteriores era guiada por interesses escusos, falta de transparência e forte presença de organizações não-governamentais".

"Infelizmente, hoje convivemos com a péssima herança de problemas mal geridos do passado", justificou a fundação.