Hoje a caminho da Independência Dom Pedro cruzaria Heliópolis ouvindo forró
Há 200 anos Dom Pedro 1º estava perto de terminar uma viagem entre Santos e São Paulo quando foi interceptado por mensageiros. A gravidade das informações contidas nas cartas que lhe foram entregues era tamanha que ao final da leitura ele bradou: "Independência ou morte!"
Pelo menos é o que aponta a chamada narrativa da Independência. Caso Dom Pedro fizesse essa mesma viagem hoje, veria os efeitos do tempo. Ele cruzaria a maior favela de São Paulo antes de chegar às margens do Ipiranga. A entrada na cidade seria ao som de forró e sertanejo.
O UOL consultou Jorge Pìmentel Cintra, professor da USP (Universidade de São Paulo) e especialista em cartografia histórica, para saber o itinerário exato feito por Dom Pedro. A intenção era refazer a reta final do trajeto e a orientação foi começar na Estrada das Lágrimas, 01.
Assim foi feito. O endereço indicado fica em São Caetano do Sul e distante 8,9 quilômetros do local do grito da Independência. Nos primeiros passos desta viagem hipotética, Dom Pedro poderia comer esfirras à vontade por R$ 24,90 num rodízio do Habib's. Logo à frente, ele encontraria um cemitério na sugestiva esquina entre a Estrada das Lágrimas e a Rua da Eternidade.
Cemitério vira atalho para estudantes
Ao refazer o caminho, Dom Pedro também descobriria que a funcionária do cemitério das Lágrimas Patricia Vereda de Araújo, 36, não sabe que tem passado boa parte da vida num lugar histórico. Ela acredita que o mesmo acontece com os familiares dos mortos.
Nunca ouviu parente de pessoas enterradas dizerem que túmulo do familiar está num caminho histórico"
Patricia Vereda de Araújo
Mas, verdade seja dita, poucos familiares visitam o cemitério. O movimento maior é de alunos que usam o lugar para cortar caminho e sair direto na bica da Paz, situada na Estrada das Lágrimas. No grupo de estudantes que atravessava o cemitério, somente Lucas dos Santos, 19, sabia dos acontecimentos.
"Uma professora de história me falou", contou ele à reportagem.
O território de São Caetano do Sul vai acabando à medida que a Estrada das Lágrimas avança. No último quarteirão da cidade, homens metidos em bonés tentam fisgar algo no pesqueiro municipal. No final da quadra, a Ponte Preta, que por algum motivo é pintada de azul, serve de passagem sobre o rio poluído que divide a cidade e São Paulo.
A troca de município com maior IDH do Brasil (São Caetano do Sul) para a periferia da maior cidade do Brasil é marcante. O primeiro bairro que Dom Pedro encontraria é a Vila Arapuá —e ele se sentiria andando por um corredor. Neste ponto, a Estrada das Lágrimas é apertada e com asfalto defeituoso. A calçada, ainda mais estreita.
A sensação de confinamento aumenta porque não há espaço entre as construções. Casas e comércios com dois ou três andares são colados uns nos outros e tampam a visão lateral. Dom Pedro passaria num caminho sem ver o horizonte.
João Batista sabe que anda pelo caminho de Dom Pedro
Os muros e as portas dos comércios e casas têm grafites desbotados cobertos por pichações. Na maioria dos trechos, árvores são raridade. Tudo é cinza.
Nada que atrapalhe o começo de tarde de João Batista Cavalcanti. O senhor de 83 anos senta numa banqueta de plástico para tomar sol e assistir o movimento da rua. Quando a monotonia fica demais, ele anda pelo bairro.
João Batista faz isto consciente de que está no caminho de Dom Pedro.
Sei que ele passou aqui vindo de Santos e estava com uma comitiva"
João Batista Cavalcanti
Morador da Estrada das Lágrimas desde 1951, ele não lembra quando ficou sabendo da história. O que João Cavalcanti sabe é que nos seus passeios conversará com os mesmos vizinhos de sempre e na volta vai encostar num bar para a dose diária de cachacinha.
Uma das opções é o restaurante Estrada. Tem cachaça tradicional, com carqueja, cambuci e umburana. Tocado por Caio Roberto Nascimento, 33, o estabelecimento não foi batizado em homenagem a Dom Pedro —o dono não sabia dos acontecimentos de dois séculos atrás e ficou feliz por trabalhar em um lugar que está na história.
Mas ele conhece muito pouco sobre Dom Pedro. "Era Dom Pedro Cabral, né?", questiona de forma imprecisa. O imperador tinha 15 sobrenomes, mas nenhum deles era o mesmo do navegador português que chegou ao Brasil em 1500.
Chegando à maior comunidade de São Paulo
Vencida a travessia da Vila Arapuá, Dom Pedro chegaria à maior comunidade de São Paulo: Heliópolis. A sensação de poluição visual e de crescimento desordenado aparece em maior proporção.
Os postes servem para exemplificar essa situação —eles abrigam maçarocas de fios em gambiarras impressionantes. Abaixo do emaranhado de cobre, os postes parecem outdoors.
Há ofertas de apartamentos para vender, empregos e muitas soluções para males do coração. Existe a opção de fazer uma "amarração para amor". Outros telefones prometem serviços de cupido: "Trago seu amor de volta".
Além de atrapalhar o andamento da comitiva real, a aglomeração de pessoas em calçadas estreitas e o absurdo de carros, caminhões e motos agride os ouvidos. Para se fazer escutar, é preciso falar num tom mais alto.
Em alguns casos, nem isto basta. Por algum motivo, donos de lojas de roupas, calçados e acessórios de celular acreditam que os clientes são atraídos por uma caixa de som tocando sertanejo e forró no talo.
Conforme avançasse por Heliópolis, Dom Pedro se depararia com igrejas evangélicas de vários nomes e poderia desconfiar que o Brasil deixou de ser majoritariamente católico. Pesquisa Datafolha apontou, em janeiro, que 50% dos brasileiros se definem como católicos e 31%, evangélicos. Como o Censo de 2020 foi adiado para este ano, não há informações oficiais atualizadas sobre religiosidade no país.
Se quisesse puxar papo com a população —sobre essas e outras mudanças—, Dom Pedro poderia parar no churrasco realizado numa funilaria.
Figueira se mantém desde antes da independência
Abastecidas de comida e cerveja, as pessoas estariam com a língua solta. Mas o imperador não podia levar as respostas para o lado pessoal. Entre os 14 participantes do churrasco na funilaria, somente Guido Modeste de Oliveira, 65, sabia sobre o caminho de Dom Pedro.
Mais adiante, o nobre português finalmente encontraria algo que não mudou desde o seu tempo. A Figueira das Lágrimas é uma árvore que fica quase no limite entre Heliópolis e o bairro do Ipiranga. O nome surgiu porque familiares de soldados que iam lutar na Guerra do Paraguai se despediam naquele ponto —não tem nada a ver com a Indepedência.
Yara Rodrigues Caldas, 65, cuida da árvore e conta um monte de causos. De acordo com ela, Dom Pedro desceu do cavalo para descansar na sombra da figueira. Na ocasião, teria comentado com a comitiva sobre uma amante que teria no bairro. Os livros de história não corroboram essas informações.
Dom Pedro encontra a selva de pedra
A Estrada das Lágrimas acaba no Terminal Sacomã e o cenário muda bastante. Viadutos cinzas por todos os lados se misturam a passarelas amarelas para pedestres, formando uma maçaroca de aço e concreto.
Depois de um horizonte limitado na Estrada das Lágrimas, a visão é ampla. Até onde a vista alcança se veem carros, ônibus e prédios. Menos na direção do terminal, onde uma cobertura azul se impõe.
Leonardo Rodrigues, 25, trabalha numa lanchonete sem saber que todos os dias passa café num lugar histórico. Ele confessa que seu forte não eram as matérias de humanas e que sempre preferiu ciências.
Bom saber um pouco mais do país, da história. Pessoal desfaz muito do Brasil e conhecendo estas coisas a gente muda a forma de pensar."
Leonardo Rodrigues
Seguindo o mapa do professor Jorge Cintra, chega-se à rua Bom Pastor. Já é bairro do Ipiranga, e o trânsito pesado continua nos seus primeiros quarteirões. Conforme as pernas vencem o morro, o lugar ganha aspecto residencial.
Finalmente o caminho fica arborizado
Com empórios de produtos importados e vitrines cheias de delícias, é certo que o tíquete médio dos comércios sobe conforme o suposto local do grito de Independência se aproxima. Aqui, Dom Pedro veria calçadas arborizadas e o barulho mais significativo é dos alunos saindo de uma escola.
Continuar pela trilha leva ao bosque que fica atrás do Parque da Independência. São tantas árvores que a sombra é constante e a temperatura, mais amena. O lugar é um oásis para pássaros que quase abafam o barulho dos carros com seu canto.
Henrique Modelli, 57, vai ali dia sim, dia não. Chegado em esporte, faz barras, apoios e abdominais nos equipamentos instalados no bosque. Ele contou os dias para este 7 de setembro chegar.
Eu tenho 57 anos de vida e frequento o bosque há 57 anos e nove meses"
Henrique Modelli
Os pais se conheceram no Parque da Independência, que será reaberto ao público amanhã. Ele lembra que nos finais de semana brincava de explorador entre as árvores. Nos dias de calor, saía de casa preparado para nadar e sabendo que precisaria correr.
Entrava na fonte para se refrescar e lá ficava até ser flagrado pelos vigilantes e fugir no pinote. Henrique sente que um ponto de referência de sua vida está sendo devolvido.
Chegando à última morada
Até hoje, a caminhada de Dom Pedro ia acabar por aqui. Mas, a partir de amanhã, o acesso ao Parque da Independência estará liberado —inicialmente, para quem trabalhou nas obras do museu e 200 alunos da rede pública de ensino; depois, para o público geral.
A suposta caminhada real teria terminado onde, dizem os livros, ocorreu o famoso grito —neste local, fica o Monumento da Independência, que abriga os restos mortais de Dom Pedro.
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