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Todo evangélico é contra a legalização do aborto? Não é bem assim

Edir Macedo já se posicionou claramente pela legalização do aborto - Reprodução/Instagram @bispomacedo
Edir Macedo já se posicionou claramente pela legalização do aborto Imagem: Reprodução/Instagram @bispomacedo

Nathalia Lino

Colaboração para o UOL

20/10/2022 04h00

As chamadas pautas de costume, tratadas quase sempre com abordagem conservadora, são comumente exploradas pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PL). Recentemente, porém, passaram a ser usadas também pela campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para, segundo o partido, "reagir aos ataques" do adversário.

Questionamentos sobre legalização do aborto costumam rondar Lula, mas recaíram sobre Bolsonaro depois que uma entrevista que ele deu à revista "IstoÉ Gente", em 2000, voltou a circular nas redes sociais.

Nela, ele diz que seu filho Jair Renan, fruto do casamento com Ana Cristina Siqueira Valle, poderia ter sido abortado se assim Ana quisesse.

"Tem que ser uma decisão do casal. Já passei para a companheira. E a decisão dela foi manter. Está ali, ó", disse na entrevista, apontando para uma foto do filho, então com pouco mais de 1 ano na idade.

A reportagem mostra um lado de Bolsonaro que é problemático para seus apoiadores evangélicos.

Apesar de se declarar católico, Bolsonaro segue as pautas evangélicas, como a criminalização do aborto, em suas propostas.

Em 2018, o então candidato a presidente foi 'batizado' pelo pastor evangélico Everaldo Pereira nas águas do Rio Jordão (o pastor foi preso em 2020, acusado de desvios de verba).

Bolsonaro também já foi "ungido" no Templo de Salomão, no ano seguinte, pelas mãos do líder da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo.

A bancada evangélica e o aborto

Em 1986, a bancada evangélica na Assembleia Constituinte era formada por 33 pessoas. Na época, o grupo não se manifestou sobre o aborto legal, permitido no país em casos de estupro, anencefalia e risco de vida.

Em 2009, nas discussões sobre o Programa Nacional dos Direitos Humanos, a pauta também não sofreu represálias nem houve uma mobilização por parte das igrejas.

Para a colunista do UOL Andrea Dip, a relação de Bolsonaro com os evangélicos começou a ser construída a partir de 2014, quando o Ministério da Educação propôs inserir a discussão de gênero na pauta do Plano da Educação.

"A partir dessa narrativa ficcional, partidos e figuras políticas da extrema direita religiosa brasileira se integraram a uma onda ultraconservadora que se erguia no mundo", escreveu Andrea.

"E, claro, perceberam aí uma oportunidade de criar novas e poderosas alianças, sobretudo com líderes de megaigrejas. O que se vendeu aos fiéis foi o combate santo a inimigos maiores: o comunismo, as feministas, os jornalistas, os professores, os ativistas, a esquerda em geral e, sobretudo, o Partido dos Trabalhadores, nas figuras de Lula e Dilma Rousseff."

Foi a partir disso que Bolsonaro estruturou sua campanha, com o apoio de denominações evangélicas, assumiu cada vez mais uma ideologia extremista e formulou propostas que atendiam aos interesses religiosos de seus seguidores.

Aborto não é unanimidade entre evangélicos

cotidiano - Alan Santos-PR - Alan Santos-PR
Líder da Igreja Universal, Edir Macedo já se declarou contrário ao aborto; hoje, sua congregação silencia
Imagem: Alan Santos-PR

Edir Macedo, o líder da Universal do Reino de Deus, por exemplo, já se mostrou várias vezes favorável ao aborto.

"Muitas mulheres têm perdido a vida em clínicas de fundo de quintal", já declarou. Ele defendia que as mulheres fossem protegidas por uma legislação voltada à saúde pública.

Em 2007, em entrevista à "Folha de S.Paulo", o pastor disse concordar com a prática. "O que é menos doloroso: aborto ou ter crianças vivendo como camundongos nos lixões de nossas cidades?"

A criança gerada de um estupro seria de Deus? Não do meu Deus!

O repórter rebateu: "se Deus deu a vida e só Ele pode tirá-la, como diz a Bíblia, não é contraditório apoiar o aborto?" Macedo respondeu: "A criança gerada de um estupro seria de Deus? Não do meu Deus!".

No mesmo ano, a emissora evangélica Record, pertencente a Macedo, vinculou uma campanha em que mulheres relataram algumas liberdades conquistadas ao longo dos anos. Ao final da divulgação, dizia-se: "Aborto. Porque toda mulher sempre é capaz de decidir sobre o que é importante".

Recentemente, porém, a Igreja Universal passou a não tocar mais no assunto.

Outros casos

Em 2018, 15 mulheres evangélicas fundaram a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, por acreditarem que a criminalização é um "atentado ao direito e à vida da mulher", além de se sentirem incomodadas com o uso político da Bíblia para defender e justificar a proibição.

"É bastante pretensioso falarem em nome de todos os evangélicos, como se toda a comunidade pensasse da mesma forma. Para nós, enquanto cristãs, causa um nível de incômodo absurdo ver esses homens no Congresso, pois eles mancham a memória do Cristo em que a gente acredita", falou Camila Mantovani, uma das idealizadoras do grupo, em entrevista ao UOL.

Entre as jovens, outras articulações religiosas, como a Aliança de Batistas do Brasil, fizeram parte do movimento.

Na época, a ideia era apresentar uma justificativa teológica em apoio à ADPF 442, ação proposta pelo PSOL que pedia a descriminalização da interrupção da gravidez até a 12ª semana.

Enquanto cristãs, causa um nível de incômodo absurdo ver esses homens no Congresso, pois eles mancham a memória do Cristo em que a gente acredita

Em 2020, quando o caso de uma menina de 10 anos que ficou grávida após sofrer estupro dentro do próprio núcleo familiar ganhou repercussão, muitas frentes religiosas tentaram impedir o aborto que era tido como legal. A mesma bancada criada em 2018 saiu em defesa da menina.

cotidiano - Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo - Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo
Ato realizado em apoio a menina de 10 anos que engravidou após estupro por familiar
Imagem: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo

O aborto, por fim, foi realizado e, apesar de ter se mantido em silêncio após o ocorrido, a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, chegou a tentar impedir que a criança realizasse o procedimento. Sem sucesso.

A ministra tinha como objetivo tirar a menina de São Matheus (ES), onde vivia, e encaminhá-la para um hospital de Jacareí, em São Paulo, a fim de prorrogar a gestação até o fim da sua evolução, para que então —mesmo oferecendo risco de vida à mãe— a menina tivesse o bebê, que seria possivelmente enviado para adoção.

Evangélicos e aborto ao longo da história

De acordo com o historiador e professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP Campinas) Marcelo Garcia Bonfim, os evangélicos já tiveram uma frente liberal nos Estados Unidos que defendia que essa posição contra o aborto era uma ideologia católica.

Essa ideia pode ter se expandido para algumas ideologias cristãs no Brasil. "No início da colonização americana, havia muitos fundamentalistas radicais, como os Quakers e Mórmons", conta.

A luta de evangélicos nos EUA a favor do aborto tem uma longa história. A Primeira Igreja Unitária de Dallas, especificamente, foi uma das responsáveis pelo acesso ao aborto, ajudando a tornar real a decisão de 1973, após o caso Roe x Wade, que garantia o direito ao procedimento.

A Clergy Consultation Service, uma outra rede de líderes protestantes, fundada em 1967, também ajudava no procedimento. Estima-se que a instituição já tenha ajudado mais de 400 mil mulheres a realizar a prática.

Para o pastor Giba Gimenes, da Igreja Galileia Church, essa visão liberal não faz parte dos "verdadeiros cristãos".

"Deus é contra. Todo cristão é guiado pela palavra de Deus. Deus é quem dá a vida e somente ele pode tirar. Se um pseudocristão, que eu digo, pensa o contrário, precisa conhecer mais da Palavra, precisa conhecer mais da vontade de Deus", diz.

Segundo uma pesquisa do DataFolha, o país ainda é liderado por católicos, com 52%, seguido dos evangélicos, com 26%.

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Políticos em culto na Assembleia de Deus Vitória em Cristo, na Penha
Imagem: Zô Guimarães/UOL

A Assembleia de Deus do Belém, em Campinas, é a maior frente evangélica no país —patriarcado de José Wellington Bezerra da Costa, que tem o filho como pastor e representante no senado, o deputado Paulo Freire Costa (PL).

De acordo com pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) realizada em 2010, a religião evangélica é dividida em três grupos: os não determinados, os missionários e os pentecostais.

A maior igreja evangélica do Brasil, como já citado, é a Assembleia de Deus, que tem grande força no Norte e Nordeste do país.

A Assembleia teve sua origem na Igreja Batista, mas dois missionários suecos, que acompanhavam a igreja, Gunnar Vengren e Daniel Berg, em Belém, acreditavam na doutrina do "Santo Batismo" e no "falar das línguas", algo que também é visto na renovação carismática, outra vertente católica.

Como essas crenças não foram aceitas na Batista, eles então, junto com outros companheiros, fundaram a Assembleia de Deus.

Ainda segundo dados do IBGE, a igreja, em 2010, contava com mais de 12 milhões de fiéis.

Permissão do aborto no país não depende do presidente

Muito tem se falado sobre a questão do aborto, por conta do embate presidencial entre Bolsonaro e Lula. O candidato petista é acusado pelos bolsonaristas de querer liberar a prática, caso eleito.

Lula já afirmou ser católico e pessoalmente contra o aborto, embora entenda a questão de saúde pública e a escolha da mulher em torno da questão. Mas, mesmo se quisesse liberar a prática, caso eleito, não conseguiria por si só.

Seria necessária uma mudança na legislação para flexibilizar as leis atuais, e isso não depende somente do presidente.

Uma alteração na lei teria que vir do poder Legislativo, ou seja, da Câmara dos Deputados e do Senado, ou do Judiciário, com uma decisão do STF.