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'Abri a janela e vi um corpo descendo na lama', diz vendedor de Vila Sahy

Júlia Marques

Do UOL, em São Paulo

22/02/2023 15h29

O vendedor de açaí Renato Cesar Alves, de 34 anos, só entendeu o tamanho da tragédia que assolou o litoral norte de São Paulo quando viu na manhã de domingo, 19, da janela de casa, os pés de uma vítima do deslizamento de terra.

"Passou um corpo descendo no meio da lama. Aí percebemos que estava tudo desabando", contou Alves ao UOL. Ele mora na Vila Sahy, em São Sebastião, uma das áreas mais atingidas pela tragédia, que já deixou 48 mortos e ao menos 57 desaparecidos.

Na noite de sábado, Alves estava com amigos na casa onde vive, no pé do morro. Como chovia muito, decidiram não sair para curtir o Carnaval.

Acordaram quando um amigo, que dormia na sala, notou que o chão estava molhado. "Estava tudo alagado, a água saiu pela janela." Ele e os amigos conseguiram se abrigar em um andar superior da casa. E esperaram até a manhã de domingo.

Na madrugada, viram um cachorro que boiava na água, já cansado de tanto nadar. O animal estava perto da altura da janela de casa — e eles conseguiram puxar o cachorro para salvá-lo.

"Aguardamos sem dormir, com medo de a casa cair, ouvindo os estrondos, a correnteza era forte. Ouvimos gente pedindo socorro na madrugada. Quando amanheceu, vi um corpo descendo. E a água ainda batia na nossa cintura", disse.

Era uma pessoa morta, cheia de lama, deu para ver o pé passando junto com os troncos
Renato Alves

Ele e os amigos foram às áreas mais afetadas e começaram a cavar com as próprias mãos, em busca de vítimas.

Não esperava uma coisa dessas, é um paraíso transformado em um caos. Está todo mundo chorando desesperado, chorando procurando algum ente querido. Sei que eu precisava ajudar quem estava precisando

"Tiramos 11 corpos, só uma com vida." Segundo afirma, há casas completamente destruídas onde estavam hospedadas cerca de 25 pessoas.

"Tem muita gente desaparecida, tinha muita gente que não mora aqui, que alugou para passar o Carnaval."

Na noite de domingo, Alves se abrigou em uma escola na região, a Henrique Tavares de Jesus, onde estão pessoas desalojadas.

"No segundo dia [de buscas], tiramos o corpo de uma menina de 18 anos. Já fazia um cheiro muito forte na região. A imagem da menina ali me chocou e eu preferi não participar mais das buscas."

Não tinha nenhum material, voltamos com pés feridos, mãos feridas, cavando com a mão mesmo
Renato Alves

Tragédia - AMANDA PEROBELLI/REUTERS - AMANDA PEROBELLI/REUTERS
21.fev.23 - Tragédia em São Sebastião deixou dezenas de mortos e desaparecidos
Imagem: AMANDA PEROBELLI/REUTERS

Sem comida, sem trabalho

O vendedor de açaí diz que um amigo dele, morador antigo da região, não resistiu ao deslizamento e há outros conhecidos que seguem desaparecidos. Ela também contabiliza as perdas materiais.

A casa de Alves não desabou, mas vários eletrodomésticos ficaram destruídos.

Ele voltou para a casa onde mora — porque a escola está lotada de desabrigados, segundo conta —, mas tem medo de que uma nova chuva a jogue abaixo.

A região está praticamente ilhada — a chegada à Vila Sahy só é possível por meio de barco ou helicóptero, afirma. O som das aeronaves é constante. "É barulho de helicóptero o dia todo, a madrugada toda."

"Estamos sem trabalho, não tem como ganhar dinheiro, não tem lugar para comprar mantimentos. Um pacote de arroz estava 20 reais." Ele tem acesso apenas à água mineral arrecadada em doações.

"Não tem um pingo de água [nas torneiras], não tomei banho, só lavo nas pernas com água mineral porque a água está toda contaminada, não tem saneamento."