Chuva recorde, encosta desprotegida, ocupação: o que já sabemos da tragédia
Uma frente fria classificada na Argentina como a mais intensa dos últimos 54 anos foi responsável pela chuva que deixou ao menos 49 mortos no litoral norte de São Paulo, com 57 pessoas ainda desaparecidas. A corrente gelada derrubou a temperatura na Argentina e no Sul do Brasil, avançou e estacionou sobre a costa paulista, unindo-se às águas que evaporaram do oceano para formar a tempestade histórica do final de semana.
O aquecimento excessivo da água do mar em São Paulo também cooperou para o volume. Segundo Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, os oceanos estão com temperaturas em média 0,8°C acima do esperado. Ao ultrapassar os 26°C, a evaporação aumenta "exponencialmente". No litoral norte, a temperatura do mar estava entre 27°C e 28°C no momento das chuvas.
Além disso, a Serra do Mar serve como uma "barreira" que não deixa a água do oceano sair do litoral. Essa evaporação concentrada se uniu à frente fria vinda do Sul, que permaneceu horas estacionada na costa de São Paulo, mantendo as nuvens pesadas sobre a região.
Foi registrado até 600 mm de chuva em apenas 15 horas, em cidades como Bertioga (líder, com 682 mm) e São Sebastião (626 mm).
Chuva foi a maior já registrada em apenas um dia no Brasil. O Cemaden detalhou que o maior acumulado da história havia sido registrado no ano passado, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Na ocasião, a cidade foi castigada com uma chuva de 530 milímetros em 24 horas. 241 pessoas morreram.
Por que as encostas caem?
Desmatamento e construções irregulares nas encostas atrapalham escoamento da água. Em 2020, a Defesa Civil de São Paulo publicou uma lista de situações que tornavam uma área de risco: o bloqueio da passagem das águas e o acúmulo de lixo também foram mencionados.
Proteção proporcionada por vegetação ajuda a conter deslizamentos. O geólogo Álvaro Rodrigues, antigo membro do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), afirma que a manutenção da Mata Atlântica sobre a Serra do Mar reduz a movimentação das encostas mesmo sob chuvas fortes.
Com estrutura de encostas desprotegidas, água tem facilidade para penetrar solo. A grande quantidade de chuva acaba saturando a terra, que em certo ponto se transforma em lama, provocando deslizamento.
Construção de rodovias que "cortam" as encostas contribuem para a instabilidade. É o caso da estrada Rio-Santos, uma das mais afetadas pela tempestade. Alternativas como túneis ou viadutos, adotados pela Rodovia dos Imigrantes, são mais sustentáveis.
Quais foram as áreas mais afetadas?
Cinco cidades entraram em estado de calamidade pública: Ubatuba, São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Bertioga.
Das 49 mortes confirmadas, 48 foram em São Sebastião e um em Ubatuba. 26 corpos já foram identificados e liberados para o sepultamento. São 10 homens, nove mulheres e sete crianças, segundo nota do governo do estado, publicada na manhã de hoje.
Em São Sebastião, a região mais atingida é a Vila Sahy. O Instituto Verdescola, sediado na área, chegou a abrigar corpos de 18 pessoas no final de semana. Eles também fizeram uma lista de pessoas abrigadas no local e que estão fora de perigo.
Veja os nomes de mortos pela chuva divulgados até o momento:
Ubatuba
- Laysa Vitória de Jesus Amorim
São Sebastião
- Angela Maria Ferreira Benicio
- Bruna Emanuela Benicio dos Santos
- Dandara Vida Caze de Souza
- Donaria Santos Figueredo
- Eduardo Leonel
- Ellyza Nayanne Celestino de Lima
- Fabiane Freitas de Sá
- Francisco Lara
- Gabriela Ribeiro
- Genival Tomas da Silva
- João Ribeiro da Silva
- Kledson Souza
- Levy Santos de Oliveira
- Maria Clara Benicio dos Santos
- Pamela Aparecida Pereira
- Robério Lima Saldanha
- Rosângela Sandanha da Silva
- Samuel de Lima Silva
- Yan Allyab Celestino de Lima
Hospitais de campanha e bases de apoio
Um navio da Marinha do Brasil chega amanhã ao Porto de São Sebastião. Ele servirá de hospital de campanha, com 200 leitos; a estrutura tem UTI (Unidade de Terapia Intensiva) com ortopedista, cirurgião geral, anestesista, cirurgião dentista, farmacêutico e profissionais de enfermagem e de saúde bucal, segundo o governo do estado.
Até o momento, a maior parte dos atendimentos acontece no Hospital Regional do Litoral Norte, em Caraguatatuba. O Instituto Verdeescola também trabalha no auxílio às vítimas, acolhendo desabrigados, socorrendo feridos e distribuindo mantimentos.
Em São Sebastião, a prefeitura faz arrecadação de doações no Fundo Social, na rua Capitão Luiz Soares, 33, no centro da cidade. Além disso, há diversas organizações recebendo recursos e os repassando para os atingidos pelo temporal. Veja no link abaixo como doar:
"Não vi algo assim em décadas": relatos das vítimas
Moradora de Santos, a jornalista Paula Quagliato passou 36 horas sem energia ou água em meio a enxurrada que invadiu sua casa de veraneio na praia de Toque Toque Grande, em São Sebastião.
Temos casa lá há décadas, sempre passamos temporada lá. Mas nunca vi um fenômeno da natureza como esse. Foi assustador.
Renata Coin, que mora há 15 anos em Boiçucanga, disse ter ficado desesperada ao ver o terreno em que vive "afundar na água".
Vi a casa em que moro há 12 anos ficar submersa, as coisas das crianças flutuando. Temos um hotel que nunca tinha sido alagado. Os hóspedes ficaram sem lugar para ficar e todo mundo se amontoou no escritório."
Renata Coin, terapeuta
Além das dificuldades impostas pela destruição, os moradores enfrentam também a inflação no preço da água e da comida. Helder Lucas, morador de São Sebastião, diz ter pagado R$ 40 em um litro de água, que antes custava R$ 8.
Parecia um filme de terror. Tenho 58 anos e nunca havia passado um medo tão grande. Moro há 17 anos aqui e nunca havia visto isso. Caiu o morro todo. Consegui salvar algumas coisas. É um sonho que vai embora. Meu filho de onze anos entrou em desespero, mas temos que ficar fortes.
Helder Lucas, ao UOL News
*Com Estadão Conteúdo
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