'Ouvi que a favela chegou': Rio-Santos separa ricos e pobres no litoral
Abrigada no condomínio de veraneio dos patrões, Jéssica Teixeira dos Santos, 31, e o marido, Jones Pereira de Almeida, 37, tiveram de sair de casa após a Defesa Civil considerar que a família vivia em uma região com risco de deslizamento, na Vila Sahy, em São Sebastião.
A região, que concentra a maioria dos mortos após o temporal que devastou o litoral norte de São Paulo, está localizada às margens da Rio-Santos. Além de atravessar cidades do litoral paulista e fluminense, a rodovia separa a vida de ricos e pobres que se estabeleceram, de um lado, em pequenas casas ou favelas, e, de outro, em casas de alto padrão.
Nascida na cidade de Coaraci, no interior da Bahia, Jéssica chegou a São Sebastião em 2005, em busca de melhores condições de trabalho. Agora, ela se depara com a frustração de ter projetos adiados por causa das chuvas e com a evidente desigualdade social entre moradores da Vila Sahy e das requisitadas praias da região, do outro lado da rodovia.
A Vila [Sahy] é como se fosse uma favela, já na Barra do Sahy e na Praia da Baleia são onde ficam os condomínios de luxo. Quando fomos para o condomínio disseram para o meu marido: 'Os desabrigados da favela chegaram'. Sentimos o preconceito nessas atitudes."
Jéssica, empregada doméstica
Jones e Jéssica vivem há sete anos na Vila Sahy. Ele trabalha na construção civil em regiões vizinhas de alto padrão aquisitivo como a praia da Baleia, Juquehy e Camburi. O casal atravessa a rodovia Rio-Santos quase todos os dias para trabalhar, fazer compras ou ir à farmácia. Na maior parte das vezes, ele de bicicleta, e ela a pé.
Nos últimos dias, com a devastação causada pela chuva, Jéssica relata que a desigualdade entre as regiões ficou ainda mais aparente. "No bairro que moro, o milho para pipoca é R$ 5. Do lado de cá, é R$ 14. Um macarrão, que custa R$ 2,50 está R$ 20 agora. Aumentou tudo", diz.
Assim como Jéssica e Jones, a maior parte dos moradores da Vila Sahy é formada por migrantes de estados do Nordeste, sobretudo da Bahia. Eles chegaram na década de 1990 para trabalhar nas construções de alto padrão na região.
Nascido na cidade do Una, também no interior da Bahia, Jones chegou na Vila Sahy depois que o pai já tinha tentado a vida na região. "Eu vim para cá com 14 anos. Meu pai veio primeiro porque ele conseguiu um emprego na marcenaria em São Sebastião e depois veio a família inteira."
Barreira social
A Vila Sahy segue o padrão de urbanização presente em diversos trechos da orla marítima brasileira. "A primeira faixa é formada por condomínios de alto padrão, casas bem projetadas, terrenos mais ou menos planos e grandes lotes", diz Anderson Kazuo Nakano, professor do Instituto Cidades da Unifesp. "Depois, a outra faixa é composta pela Rio-Santos, que serve como ligação de todos esses núcleos da zona costeira."
A divisão imposta pela rodovia não é apenas geográfica, mas social e econômica. "Para construir as mansões foi necessária a mão de obra de trabalhadores que precisavam estar próximos ao local de trabalho. Eles passam a ser empregados como caseiros, profissionais de manutenção de limpeza, jardineiros, porteiros ou no comércio popular", diz Nakano.
A rodovia Rio-Santos funciona como uma barreira entre faixas com empreendimentos residenciais de alto padrão, casas de veraneio em condomínios fechados, e uma parte mais popular com moradia de trabalhadores que construíram suas casas junto com a construção e mansões
Anderson Kazuo Nakano
A Vila e a Favela do Sahy
Diferentemente do litoral sul de São Paulo, a urbanização do litoral norte é recente. Segundo Nakano, teve início na década de 1990 e se intensificou nos anos 2000. Nesse período, vieram os primeiros migrantes. "As próprias construtoras traziam esses trabalhadores de fora de São Paulo e providenciavam alojamento", diz o professor.
Essa formação fez a Vila Sahy ser composta por lotes pequenos e construções populares. Muitos trabalhadores chegaram e compraram lotes dos antigos moradores. Além disso, teve início também o processo de favelização. "Em regiões de encostas, próximas à serra do Mar, começaram a se formar núcleos de favelas e essas foram as construções que mais sofreram com as chuvas e deslizamentos", diz Nakano.
Essa crise urbana faz parte da crise ambiental
Nakano
Remoções e a expectativa da volta à rotina
Quando começaram as chuvas, Jones e Jéssica tiveram tempo somente de fazer uma mala com poucas roupas e alguns documentos. "Saí da primeira rua e fui para a rua três, que também não foi muito afetada. Fiquei lá até o início da noite."
O casal, que tem quatro filhos, decidiu pedir ajuda a conhecidos. Jones conseguiu acessar a rede de internet de um condomínio e se deslocou para a casa de um amigo. "Às 20h, o Exército pediu para gente evacuar o local de novo porque havia uma cratera com risco de desabamento."
A saga do casal após as chuvas joga luz mais uma vez na discussão sobre a remoção de pessoas de áreas de risco. Em alguns casos, diz Nakano, a remoção favorece exclusivamente o mercado imobiliário. Segundo ele, um projeto viável de remoção deve incluir:
- Análise das áreas de risco para verificar quantas moradias estão sob ameaça;
- Participação dos moradores nos processos de decisão;
- Visitar de moradores para as áreas que serão destinados;
- Reconstrução das redes de relações dos moradores nos novos locais.
As interligações da Vila do Sahy com os municípios vizinhos são fundamentais para o desenvolvimento da região. "A Rio-Santos não é a adequada para essa interligação. É uma rodovia regional que funciona de uma maneira conflituosa com o tráfego local", diz Nakano.
Segundo ele, é necessário pensar em alternativas como um sistema de ciclovias nas margens da rodovia. "Muitos trabalhadores da Rio-Santos utilizam bicicletas", afirma. Para ele, também seria repensar o uso dos imóveis de grande porte no litoral. "São modelos subutilizados a maior parte do ano. O mundo todo está pensando essa ocupação."
Enquanto isso não acontece, Jéssica diz que tudo que quer é juntar dinheiro para voltar à Bahia. "Quero me estabilizar e voltar. Vim trabalhar aqui para ter uma vida melhor, mas com essas chuvas tudo vai parar e bate uma frustração."
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