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Paliativas, reações a tragédias focam em ajuda emergencial: 'Vivo com medo'

Casas no bairro Caxambu, um dos afetados pelos deslizamentos em Petrópolis (RJ), em fevereiro de 2022 - Arquivo pessoal
Casas no bairro Caxambu, um dos afetados pelos deslizamentos em Petrópolis (RJ), em fevereiro de 2022 Imagem: Arquivo pessoal

Fabíola Perez

Do UOL, em São Paulo

09/03/2023 04h00Atualizada em 09/03/2023 11h34

Raquel Neves, 40, mora no bairro Caxambu, em Petrópolis (RJ), desde que nasceu —mas, no último ano, teve que aprender a viver com medo. Joana D'Arc Santos, de São Sebastião, também diz conviver com a preocupação. Às margens de um rio no Recife, Luzinete da Silva fica nervosa cada vez que chove. Longe dali, Andreia dos Santos, que mora em Francisco Morato (SP), tem esperança de um dia poder voltar para sua casa, engolida pela lama.

Apesar de viverem em lugares diferentes, tragédias em comum unem as quatro. Elas perderam tudo ou quase tudo em áreas de risco atingidas por temporais em três estados —e esperam por uma moradia segura.

Levantamento do UOL sobre atendimento às vítimas de deslizamentos e enxurradas no último ano indica que as administrações estaduais e municipais oferecem, logo, auxílio emergencial e abrigos temporários —mas patinam nas políticas de habitação e projetos a médio e longo prazo.

Dias e noites em escola e hotel

Há quase três semanas, a empregada doméstica Joana D'Arc Teixeira da Silva Santos foi obrigada a deixar a casa para trás na Vila Sahy, em São Sebastião —região mais prejudicada pelo temporal que atingiu o litoral norte de São Paulo no Carnaval. Ela e o marido passaram os dias seguintes à tragédia em um abrigo temporário em uma escola e agora estão em uma pousada.

A segunda mudança veio quando o governo de São Paulo deu início às transferências de famílias que estavam nas escolas na Vila Sahy para 4 mil leitos disponibilizados pela rede hoteleira local. A previsão é de que 824 desabrigados sejam levados a hotéis. Foram 600 mm de chuva em um único dia —o maior volume já registrado nesse período no país.

Queria voltar para a minha casa, mas lá a segurança é uma coisa que ninguém tem."
Joana D'Arc Teixeira da Silva

Durante as visitas que fez à região, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) prometeu moradias populares às vítimas do desastre.

21.fev.2022 - Equipes de resgate atuaram após deslizamento na Vila Sahy, em São Sebastião - Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo - Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
21.fev.2022 - Equipes de resgate atuaram após deslizamento na Vila Sahy, em São Sebastião
Imagem: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

A SDGU (Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação) informou que identificou quatro terrenos com 71.248 m² em São Sebastião, Baleia Verde, Maresias e Vila Sahy para a construção dessas unidades. A desapropriação já foi anunciada, mas não há prazo para o início das obras.

O governador chegou a pedir para o governo federal disponibilizar de 200 a 250 apartamentos prontos em Bertioga para alojar as vítimas da chuva de São Sebastião —nesse caso, as famílias teriam de mudar de cidade e ficar longe de amigos e possivelmente do trabalho.

No endereço em área de alto risco, há entraves

Moradores de Francisco Morato (SP), Gerson e Andreia vivem em área de risco e não têm auxílio social - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Moradores de Francisco Morato (SP), Gerson e Andreia vivem em área de risco e não têm auxílio social
Imagem: Arquivo pessoal

Pouco mais de um ano de um deslizamento que ocorreu em Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo, que deixou 18 mortos e ao menos 2 mil pessoas desabrigadas, Gerson da Silva, 57, e mulher, Andreia dos Santos, 46, ainda voltam à casa onde viviam, em Francisco Morato, cidade vizinha, para limpar o barro que invadiu os cômodos.

Andreia afirma que não conseguiu obter o aluguel social. "A prefeitura disse que tinha que derrubar tudo [a minha casa]. Não assinei o papel porque a garagem do vizinho fica no meu terreno", diz. Hoje, ela trabalha como auxiliar de cozinha para pagar as contas para pagar o aluguel de R$ 800. Gerson está desempregado. "Foi um ano de muito aperto financeiro e de muita tristeza."

Nada mudou, as coisas só pioraram."
Andreia dos Santos

Ao UOL, a Prefeitura de Francisco Morato confirmou que a assinatura do termo de demolição é necessária para o aluguel social. "É imprescindível a interdição e demolição do imóvel a fim de garantir que o mesmo permaneça inabitado e assegurar a proteção à vida."

É um desrespeito com a humanidade dessas pessoas, elas têm história, memória. A tragédia é muito maior porque elas perderam familiares. Não dá para responsabilizar as pessoas amontoadas em morros e beiras de rios. Não é o sonho de vida de ninguém."
Stefanie Bertholini, líder comunitária em Franco da Rocha

Canaleta que passa pela casa de Andreia e Gerson, em Francisco Morato (SP) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Canaleta que passa pela casa de Andreia e Gerson, em Francisco Morato (SP)
Imagem: Arquivo pessoal

A administração municipal informou ainda que paga o Auxílio Moradia Emergencial no valor de R$ 608,94 a 380 famílias. Um programa ofereceu, por seis meses, R$ 300 a 393 a famílias que tiveram os imóveis interditados ou atingidos pelas chuvas.

A prefeitura disse que está em andamento junto à Defesa Civil nacional um plano para 70 moradias a quem teve o imóvel demolido —a previsão é que o pagamento ocorra em 2024. Há também um projeto em andamento de 622 unidades habitacionais, "sem previsão de conclusão" e uma obra de contenção na rua São Carlos "prevista para junho."

Perdas física e de história

Moradora de Recife, Luzinete e as netas vivem em área de risco atingida pela chuva de maio de 2022 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Moradora de Recife, Luzinete e as netas vivem em área de risco atingida pela chuva de maio de 2022
Imagem: Arquivo pessoal

A dona de casa Luzinete Maria da Silva, 64, perdeu os poucos móveis que tinha após a enchente do rio Capibaribe no bairro da Várzea, no Recife. A cheia foi causada pelas chuvas que atingiram a capital pernambucana em maio do ano passado —e foram consideradas o fenômeno climático mais grave dos últimos 50 anos no estado. "Só não perdemos a vida", diz.

Voltei porque a necessidade obriga. Se eu tivesse condições, sairia. Não durmo direito, fico sonhando com a enchente. Qualquer chuvinha, acordo chorando."
Luzinete Maria da Silva

Ela e as netas têm a ajuda da instituição Gris Espaço Solidário, que presta apoio às famílias atingidas. "Foi uma das experiências mais traumáticas da minha vida. Não é só a perda física, é a perda da história", afirma Joice Paixão, coordenadora da instituição.

Os moradores do bairro temem a eventual chegada de mais chuva neste ano. "As pessoas hoje têm de escolher se vão comer ou comprar um tijolo para reconstruir a casa", diz.

Chuva provocou enchente no bairro da Várzea, em Recife (PE), em maio do ano passado - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Chuva provocou enchente no bairro da Várzea, em Recife (PE), em maio do ano passado
Imagem: Arquivo pessoal

Ao UOL, a Prefeitura do Recife informou que criou o AME, um auxílio emergencial no valor de R$ 2,5 mil, para destinar às vítimas. Ele foi pago a 22 mil famílias que moram em áreas alagadas e mapeadas pela Defesa Civil.

A administração disse ainda que está em andamento o programa ProMorar Recife "com investimentos na ordem de R$ 1,5 bilhão para garantir obras de infraestrutura em 40 comunidades, incluindo as mais atingidas pelas chuvas do mês de maio". Ações devem chegar a 500 mil pessoas e incluem a entrega de unidades habitacionais.

Perto de onde ocorreu deslizamento de pedras

A turismóloga Raquel, de Petrópolis, vive até hoje na rua Bartolomeu Sodré, próximo de onde ocorreram deslizamentos de pedras no bairro do Caxambu, em fevereiro do ano passado —no dia 15, a prefeitura registrou o maior desastre de chuvas da história da cidade. Foram 775 deslizamentos e 235 mortes. "Nunca vimos nada parecido", diz Raquel.

Minha casa fica no final da rua e não teve a estrutura abalada, mas meus tios tiveram de se mudar dali. Tentamos salvar os vizinhos. A vida de todo mundo virou de cabeça para baixo."
Raquel Neves

Apesar dos riscos, ela não tem a intenção de se mudar. "Gostaria de ver obras acontecendo aqui, mas largar mão de tudo, não queria, não."

Segundo a turismóloga, é preciso retirar pedras que ainda estão soltas nos morros e nas nascentes dos rios. "Sem isso, ninguém vai se sentir seguro."

18.fev.2022 - Casa destruída após temporal que atingiu Petrópolis no ano passado - Lucas Landau/UOL - Lucas Landau/UOL
18.fev.2022 - Casa destruída após temporal que atingiu Petrópolis no ano passado
Imagem: Lucas Landau/UOL

A Prefeitura de Petrópolis diz que 3.486 famílias recebem aluguel social no valor de R$ 1 mil: R$ 200 pagos pela prefeitura e R$ 800 pelo governo estadual. A administração municipal afirma que estão "em andamento" 129 obras —41 em curso, 40 em licitação e 48 concluídas; 86 são de contenção.

Em relação à moradia, a prefeitura informou que o prefeito Rubens Bomtempo esteve em Brasília em janeiro para uma audiência com o ministro das Cidades, Jader Filho, para tratar sobre habitação —mas não deu prazos para o projeto sair do papel.

Racismo ambiental

Após a tragédia de São Sebastião, especialistas ressaltaram que a falta de planejamento urbano está relacionada ao racismo ambiental, que é a discriminação sofrida por grupos minoritários através da degradação ambiental.

Para a secretária executiva do Fórum Popular da Natureza e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, Rita Maria da Silva Passos, as respostas às tragédias permanecem as mesmas apesar das mudanças climáticas. "O que não muda é o descaso de políticas públicas para obras contenção das encostas, dragagem, recomposição de vegetação para absorção das águas, moradias adequadas e mobilidade", diz.

O racismo ambiental não está nos danos ambientais aos povos de cor em si, mas no racismo institucional que negligencia esses corpos, sacrificando-os. Existe uma escolha de políticas ambientais (públicas ou empresariais) que discriminam esses povos de cor."
Rita Maria da Silva Passos, pesquisadora da UFRJ

Ela ressalta ainda que as obras são paliativas, os abrigos, insalubres e os aluguéis sociais, insuficientes. "Praticamente não há reparação aos danos do pouco patrimônio que possuíam. Essas pessoas sofrem com o racismo ambiental antes, durante e após os desastres."