'Escravizados': Ações contra empresas que não fazem acordo batem recorde
O número de ações judiciais envolvendo empresas que utilizam mão de obra de trabalhadores em condições análogas à escravidão bateu recorde em 2022. A série histórica começa em 1995, quando o Brasil passou a reconhecer oficialmente o trabalho forçado em território nacional diante da comunidade internacional.
Segundo o MPT (Ministério Público do Trabalho), são casos em que as companhias não aceitaram fazer um acordo por meio de um TAC (Termo de Ajuste de Conduta).
Dados do MPT obtidos com exclusividade pelo UOL apontam que:
- Entre 1995 e 1998, nenhuma ação foi registrada;
- Entre 1999 e 2011, 55 ações civis públicas foram registradas, mas nenhum ano ultrapassou o total de 10 ações;
- Em 2012, foram 23 ações civis públicas trabalhistas.
- Em 2022, o número saltou para 126 --aumento de 477,8% nos últimos 10 anos.
Os números indicam uma tendência de crescimento de casos judicializados. Neste ano, somente até 15 de fevereiro, havia 19 registros.
Quando as empresas não aceitam o termo de conduta proposto ou quando não há chance de negociação em função da gravidade da situação flagrada, o MPT entra na Justiça trabalhista com uma ação civil pública para cobrar a responsabilização das empresas.
"Pode ocorrer um acordo judicial ou a condenação da empresa ao pagamento dos trabalhadores escravizados", diz Italvar Medina, vice-coordenador do Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas).
De acordo com o Portal da Inspeção do Trabalho, houve um crescimento também no número de estabelecimentos fiscalizados na série histórica. Em 1995, 77 estabelecimentos passaram pela averiguação realizada pelo órgão. Já em 2022, foram 476 - o equivalente a 518,1% de aumento em 27 anos.
O número de inquéritos civis sobre trabalho análogo à escravidão também aumentou de 415 para 802 —93,2% nos últimos dez anos.
Medina ressalta que, ainda que elevados, os números são subnotificados. "Isso pode ser só a ponta do iceberg", diz.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, os crescimentos —tanto no número de ações civis públicas trabalhistas quanto de inquéritos civis— têm sido motivados por uma série de fatores.
Há uma intensificação de operações do MPT, maior repercussão de casos de trabalho análogo à escravidão e maior conscientização da sociedade --o que leva a um maior número de denúncias."
Italvar Medina, vice-coordenador do Conaete
Há denúncias feitas por terceiros, mas existem também casos em que pessoas em situação análoga à escravidão conseguem buscar autoridades e fazer a denúncia —como no caso dos escravizados das vinícolas em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. A operação foi realizada após três trabalhadores terem procurado a PRF (Polícia Rodoviária Federal), em Caxias do Sul, afirmando terem fugido de um alojamento.
Na noite da quinta-feira (9), o MPT firmou um TAC com as vinícolas que contratavam serviços terceirizados da emprega flagrada mantendo trabalhadores em condições degradantes em Bento Gonçalves.
Além do aumento no número de denúncias, a intensificação da vulnerabilidade social no país também contribuiu para o envolvimento de trabalhadores nesta situação. "Mais pessoas em crise se tornam alvos de aliciamento", diz Medina.
Somente no ano passado, foram recebidas 1.973 denúncias sobre trabalho análogo à escravidão —crescimento de 39% em relação ao ano anterior.
Quando a denúncia chega ao MPT é aberto inquérito para a analisar se o fato denunciado configura trabalho análogo à escravidão. "Se a denúncia atender as características, se houver fundamento, abrimos os procedimentos —que podem ser os TACs ou o ajuizamento da ação civil pública. Caso não sejam comprovados os atos ilícitos, a denúncia é indeferida", explica o vice-coordenador.
Em relação ao número de TACs, o aumento foi menos significativo. Os acordos saíram de 314 em 2021 e passaram para 351 no ano passado. Entretanto, ao considerar o início da série histórica, é possível ver uma diferença mais representativa, passando de 9, em 1995, para 473, em 2011.
Entre os anos de 2015 e 2020, foram registrados os números mais baixos de termos de ajuste de conduta da última década.
"Uma coisa que interfere é o volume de operações realizadas ao longo dos anos", avalia Medina.
Ele afirma que a portaria efetivada durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB, 2016-2018), que altera os parâmetros de fiscalização do trabalho análogo à escravidão, a redução da quantidade de operações e o sucateamento dos órgãos envolvidos na fiscalização impactaram os números. "Desde 2013, não é realizado um concurso público para auditor fiscal do trabalho e tudo fica mais difícil quando os auditores não estão nas operações", afirma.
Em 2020, ano marcado pela pandemia da covid-19, foi registrado o menor número de termos de ajuste de conduta e o segundo ano com menor número inquéritos civis abertos dos últimos dez anos. "Houve uma queda no número de fiscalizações, voos foram cancelados, houve também uma reorganização das equipes para não comprometer a saúde dos funcionários."
Para o procurador-geral do Trabalho José de Lima Ramos Pereira, o aumento dos números reflete o aperfeiçoamento do sistema de inteligência e proteção do MPT, mas também a confirmação do trabalho análogo à escravidão como um fenômeno contemporâneo.
Relatos de trabalhadores denunciando violências como choques e spray de pimenta não podem ser aceitos."
José de Lima Ramos Pereira, procurador-geral do MPT
As operações demonstram, segundo Medina, que sem políticas sociais o trabalho análogo à escravidão contemporâneo continuará uma prática recorrente.
"São necessárias políticas que aumentem a qualificação profissional, que combatam o racismo estrutural —já que mais de 60% dos resgatados são negros—, que incentivem a reforma agrária para que essas pessoas tenham terras para produzir."
Mas, ao contrário disso, diz ele, o que se tem é um aumento de atividades clandestinas, como o garimpo ilegal, que recrutam esse tipo de mão de obra e, ao mesmo tempo, a ausência de políticas de acolhimento dos resgatados.
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