'Vi outro no espelho': projeto faz harmonização facial em pessoas trans

"É bom pra autoestima e pra segurança da gente", resume a aderecista de Carnaval Robertta de Freitas Lima, 44, sobre a harmonização facial que ganhou de presente em um projeto social no Rio de Janeiro criado para mulheres e homens trans.

Robertta se inscreveu e, após deixar muitos recados nas redes sociais do projeto Olhos da Alma, foi selecionada.

"Em maio, faltou alguém e me ligaram", conta. Ela chegou ao IDGM (Instituto Dr. Gabriel Machado), em Jacarépagua (zona Oeste), entrou em uma sala de aula e, rodeada por estudantes, passou uma hora e meia recebendo aplicações de ácido hialurônico — que dá volume ao rosto — e fios de PDO — para "puxar" o rosto e estimular colágeno.

Como surgiu o projeto social

A ideia ocorreu por acaso em 2021. O biomédico e professor Gabriel Machado ensinava seus alunos como a harmonização facial estava deixando as pessoas com o rosto padronizado.

Eu explicava como é importante respeitar os traços de cada um, porque a técnica pode transformar uma face masculina em feminina. Foi quado tive um estalo: dava para fazer exatamente isso com pessoas trans!
Gabriel Machado, biomédico

Também LGBT+, Machado decidiu oferecer gratuitamente o procedimento durante seus cursos de harmonização facial. "Assim, eu ajudo essa comunidade e ensino meus alunos sobre essas diferenças no rosto de homens e mulheres", declara o biomédico, sobre o trabalho realizado pelo instituto que leva as iniciais do seu nome.

"Se fosse cobrar, custaria de R$ 6.000 a R$ 10 mil", afirma.

O preconceito velado dos profissionais dessa área acontece por falta de contato no dia a dia. No curso, eles são estimulados a usar os pronomes corretos e podem ter mais empatia no futuro porque terão tido seu primeiro contato com uma pessoa trans.
Gabriel Machado, biomédico

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Olhos da Alma tem fila de espera. O projeto ganhou força em 2021, quando Machado levou o prêmio de profissional revelação em um concurso da MedBeauty. Desde então, essa empresa fornece o material utilizado nas harmonizações de pacientes trans. "Temos agora uma fila de mais de 100 pessoas, incluindo de outros estados", comemora o biomédico.

"Minha mãe é da igreja e fica com medo"

O antes e depois da harmonização facial de Robertta de Freitas Lima, 44
O antes e depois da harmonização facial de Robertta de Freitas Lima, 44 Imagem: Arquivo Pessoal

Robertta conta que os amigos aprovaram os resultados do procedimento gratuito. "Minha mãe fica com medo porque é da igreja, mas meus amigos adoraram", diz Roberta.

Estou amando, amando! Fiz boca, bochecha, queixo. Agora, sim, eu posso dizer que estou belíssima (risos). Minha autoestima está ótima porque o doutor não exagera no preenchimento.
Robertta de Freitas Lima, 44

Robertta, que se descobriu trans aos 15 anos, conta que foi expulsa de casa pelo pai aos 20 anos. "Nunca brinquei com coisas de menino. Eu brincava de circo, de loira do Tchan e de boneca", diz.

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"Outra pessoa no espelho"

O analista financeiro Kaique de Castro de Lucena, 29, também participou do projeto. "Eu tinha o tipo de rosto que estavam precisando porque era oval", conta.

O antes e depois da harmonização facial de Kaique de Castro de Lucena, 29
O antes e depois da harmonização facial de Kaique de Castro de Lucena, 29 Imagem: Arquivo Pessoal

Kaique preencheu o maxilar, "pra ficar mais quadrado", e o queixo, "que era bolinha". "As pessoas percebem mesmo quando tiro a barba", diz.

Eu me vi outra pessoa no espelho. Mexeu com a minha autoestima porque me senti mais masculino. Pra mim foi importante, fiquei muito feliz.
Kaique de Lucena, 20

Lucena diz que se percebeu homem trans aos 23 anos, quando assistiu à novela Força do Querer (2017). "Quando a Ivana (Carol Duarte) apareceu, percebi que eu passava pela mesma situação", diz ele, que após sessões de terapia iniciou o tratamento hormonal no ano passado.

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"Meu rosto inchou"

A educadora social Kelly de Oliveira, 40, ganhou a harmonização a uma semana do aniversário. "Fiz a avaliação e o procedimento no mesmo dia", diz ela, que soube do Olhos da Alma por uma amiga.

O antes e depois da harmonização facial de Kelly de Oliveira
O antes e depois da harmonização facial de Kelly de Oliveira Imagem: Arquivo Pessoal

A harmonização foi uma conquista para quem foi expulsa de casa pela mãe ao se assumir trans aos 15 anos. "Passei a trabalhar com prostituição até os 28", diz. Foi quando conheceu o companheiro, um homem cis. "Voltei a estudar, entrei em um projeto social e hoje trabalho acolhendo a população LGBT+."

Kelly se surpreendeu com o resultado do procedimento. "Fiz quase o rosto todo: boca, queixo, nariz, bochecha. Levantei a sobrancelha e fiz a testa."

O resultado foi melhor do que eu esperava, queria até fazer de novo. Mudou minha perspectiva, e todo mundo adorou.
Kelly de Oliveira

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A pós-harmonização, no entanto, foi difícil. "No primeiro dia, meu rosto ficou tão inchado que não dava para colocar a cabeça no travesseiro", relata. "Enrolei uma toalha no pescoço para não encostar. Depois de dois ou três dias foi melhorando, e o resultado ficou incrível."

Os resultados duram de 12 a 18 meses. Para isso, o biomédico recomenda tomar bastante água (quase três litros por dia para uma pessoa com 70 quilos). "O ácido hialurônico puxa a água para onde a gente injetou e mantém a hidratação na área, dando volume ao tecido", explica Machado.

Harmonização reforça esteriótipo?

Os procedimentos do tipo buscam oferecer reconhecimento social como antídoto à discriminação e violência. A análise é do pesquisador Aureliano Lopes da Silva Junior, da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em um artigo científico sobre a feminilização de rostos para um concurso de beleza para transexuais tema. O gênero está, na verdade, no olhar de estranhos, que muitos transexuais esperam que seja de aprovação, sugere o pesquisador.

Para Machado, os traços físicos de fato não definem a identidade de gênero, mas a busca por segurança e autoestima também é legítima.

A harmonização facial pode reforçar os esteriótipos impostos pela pressão social, mas a falta de traços masculinos ou femininos ainda aumenta a violência e a discriminação contra a população trans.
Gabriel Machado, biomédico

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Projeto é do professor e biomédico Gabriel Machado
Projeto é do professor e biomédico Gabriel Machado Imagem: Arquivo Pessoal

Robertta, Kelly e Kaique dizem que não harmonizaram o rosto para esconder sua identidade de gênero, mas concordam que o procedimento traz segurança. "Algumas meninas não querem se identificar como trans e fazem harmonização porque o mundo está perdido, tem muita violência e preconceito até em nosso meio", observa Robertta.

"Eu não fiz harmonização para parecer uma pessoa cis", afirma Kelly. "Mas trabalho com público e quero estar mais confortável, com a unha bem feita, a pele bonita. A gente precisa passar uma boa impressão porque ainda é muito marginalizada."

Roupa e barba não definem gênero, mas tenho amigo que mesmo harmonizado tem rosto feminino. É muito chato as pessoas tratarem a gente no feminino. Especialmente para esses casos, a harmonização pode ajudar.
Kaique de Lucena

151 mortos em 2022. Só no ano passado, 131 pessoas trans foram assassinadas no Brasil e 20 tiraram a própria vida em razão da discriminação. Entre janeiro e abril deste ano, 46 foram assassinadas — 45 delas eram mulheres, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

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