Fundamentais para apurar chacina, imagens de câmeras de PMs viram mistério
Uma semana após início da Operação Escudo, que deixou ao menos 16 mortos na Baixada Santista, nenhum dos três órgãos que solicitaram acesso às imagens das câmeras corporais instaladas nos uniformes dos policiais teve acesso às gravações. Os vídeos são fundamentais para desvendar as circuntâncias em que ocorreram os assassinatos no Guarujá após a morte do soldado da Rota Patrick Bastos Reis.
O que aconteceu
A Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, a Defensoria Pública de São Paulo e o Ministério Público de São Paulo solicitaram acesso às imagens produzidas pelos equipamentos acoplados aos uniformes dos agentes da Rota após os primeiros relatos de torturas e mortes no Guarujá. Nenhum afirmou ter recebido as imagens até o fechamento desta reportagem.
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As câmeras operacionais portáteis (COP) passaram a ser usadas pela Polícia Militar de São Paulo em 2020, com o Programa Olho Vivo. As gravações ocorrem de forma ininterrupta e, segundo pesquisadores e autoridades, contribuíram para a queda nas mortes em decorrência de intervenção policial em São Paulo no ano passado.
No caso da chacina no Guarujá, especialistas em segurança pública afirmam que as gravações já deveriam ter sido acessadas pelos órgãos de controle da atividade policial.
Esses dados podem ser acessados quase que em tempo real. Essa demora coloca dúvidas sobre o que ocorreu durante a operação e por que as imagens não vieram a público até agora.
Alan Fernandes, sociólogo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo afirmou que "as requisições do Ministério Público serão todas atendidas". A pasta, porém, não deu prazo para o pedido ser atendido. A SSP disse que as imagens captadas ficam armazenadas em uma plataforma sob o comando da PM.
A pasta argumenta que as câmeras ajudam a compor "o conjunto probatório de inquéritos de mortes por intervenção policial — e não são o único elemento". A investigação inclui ainda perícias, depoimentos de testemunhas e busca por outras provas.
Entre janeiro e julho deste ano, o número de mortos pela Polícia Militar em serviço aumentou 24,2% quando comparado ao mesmo período de 2022. Segundo dados do MP-SP, 185 pessoas foram mortas por policiais militares contra 149 nos mesmos meses de 2022.
Estamos aguardando ainda as imagens, estranhando, contudo, a demora para reunir todos os elementos que possam contribuir para um procedimento mais completo e transparente.
Cláudio Silva, ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo
Gargalos no Programa Olho Vivo
Após os primeiros relatos de mortes por intervenção policial, o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, disse à GloboNews, na segunda-feira (31), que as imagens "estarão à disposição" do Poder Judiciário e do Ministério Público.
No dia seguinte, à CNN Brasil, afirmou que alguns equipamentos usados pelos policiais durante essa operação podem não ter funcionado adequadamente.
"O tempo ideal para os órgãos terem acesso a essas gravações é imediatamente", afirma Carlos Augusto, cientista político e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Segurança Pública, Violência e Justiça da Universidade Federal do ABC. O pesquisador pondera que o tamanho do efetivo e da operação também podem causar a morosidade.
Um dos principais pontos a serem melhorados no Programa Olho Vivo é o acesso às gravações. De acordo com Fernandes, Ministério Público, Polícia Civil e Ouvidoria da Polícia deveriam ter acesso ao sistema que reúne as gravações. Um entrave a isso, apontado por Augusto, são os custos gerados para a administração do material. "Seria necessário que cada um desses órgãos deslocasse uma pessoa para gerenciar as horas de gravação."
A Operação Escudo reuniu agentes de diferentes unidades da polícia do estado. Para Fernandes, nos casos de operações dedicadas a prisões, as gravações com áudio e a opção por melhorar a qualidade de imagem deveriam ser obrigatoriamente acionadas.
Como funcionam os equipamentos
As câmeras corporais são acopladas aos uniformes na região do peito dos PMs. A posição permite captar a maior parte do corpo das pessoas com as quais os policiais interagem, além de registrar movimentos realizados pelas mãos dos agentes. O modelo possui presilhas que impedem que o equipamento se solte acidentalmente.
Os policiais não podem escolher o que ou quando filmar. As gravações são ininterruptas e as câmeras permanecem ligadas mesmo em patrulhamento de rotina — o policial tem que sinalizar quando tem início uma ocorrência. Dessa maneira, fica mais fácil recuperar o arquivo.
Há dois tipos de vídeo: os de rotina e os intencionais. Os dados obtidos sem o acionamento da gravação são chamados de vídeos de rotina, enquanto aqueles obtidos pelo acionamento deliberado do policial são chamados de vídeos intencionais. Os policiais em serviço podem retirar a câmera em algumas situações — como ao usar o banheiro e no período de refeições.
Os vídeos de rotina ficam armazenados por 90 dias e os intencionais pelo período de um ano. Para reduzir custos, a resolução das imagens dos vídeos de rotina é inferior à dos intencionais — o som ambiente também não é armazenado.
Há alguma arbitrariedade, mas caso os vídeos intencionais não sejam acionados a informação chegará ao Comando. Ainda assim, há o respaldo dos vídeos de rotina.
Alan Fernandes, sociólogo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Sob Tarcísio, governo não adquiriu novas câmeras
A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) herdou 10.125 câmeras e não realizou nenhuma compra até agora. O Olho Vivo foi implementado na gestão de João Doria (então PSDB), em 2020.
As mortes despencaram com câmeras. Nos batalhões onde os equipamentos foram implementados, as mortes provocadas pela polícia caíram 76% entre 2019 e 2022, de acordo com relatório publicado em maio pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).
Já nos batalhões que ainda não usam, a queda das mortes foi muito menor — de 33%. O número de policiais mortos em serviço também caiu após a adoção das câmeras: de 14 para 6, neste mesmo período.
A SSP informou que as 10.125 câmeras em uso abrangem 52% do efetivo operacional da PM. Segundo a pasta, todos os batalhões da capital e da Grande São Paulo possuem o equipamento, assim como alguns batalhões do litoral, como Santos e Guarujá, e do interior (Campinas, Sumaré e São José dos Campos). O 1º e 2º Batalhão de Policiamento de Choque também utilizam as câmeras.
O governo disse que há um estudo em andamento para expandir o programa para outras regiões do estado, mas que isso depende da "infraestrutura de internet móvel para transmissão de dados em tempo real, que ainda é deficiente em muitos locais".
Discursos sobre câmeras
Durante a campanha eleitoral, Tarcísio atacou as câmeras e prometeu retirá-las. O então candidato classificou o equipamento como "um voto de desconfiança ao policial".
A posição dele mudou somente dias antes do segundo turno. Na ocasião, disse que iria avaliar a política com especialistas da segurança pública. Ao assumir, afirmou que não mexeria no programa.
A mesma mudança de posicionamento ocorreu com o secretário da Segurança Pública. Em 2021, quando era deputado federal pelo PL-SP, Derrite disse que as câmeras eram uma "forma de intimidação". Em janeiro, negou ter intenção de acabar com o programa e disse que pretendia incluir mais ferramentas à câmera, como um software para identificação de carros roubados.