'Tiro, porrada e bomba não vai resolver', diz vizinha da 'cracolândia'
Moradora da região central de São Paulo, a cabelereira Danielle Mendes, 30, conta como tem sido a convivência com uma "cracolândia" em expansão desde a sua adolescência. Ela cita o aumento da violência nas ações policiais e a crescente sensação de insegurança para quem circula pela região.
"A 'cracolândia' tinha famílias"
Eu moro na região central de São Paulo desde os 15 anos. Vim para cá com a minha mãe, que trabalhava como ambulante. Eu cresci no meio da 'cracolândia', né? Hoje, tenho 30. Falam em revitalizar o centro, mas tirar as pessoas de casa e jogar na rua não é revitalizar. Não eram só usuários de drogas. A 'cracolândia' tinha famílias.
Eram pessoas que moravam em uma rua que foi interditada e desapropriada. As crianças acabavam indo para a droga junto com os adultos. Sei porque já escutei as conversas e porque conheço algumas pessoas que frequentam a 'cracolândia' também.
É triste ver pessoas que tinham casa e de repente estão na rua. Que não usavam droga e de repente estão usando. O meu marido era usuário e se recuperou graças à vontade própria e da família, que o acolheu. O Estado nunca ajudou.
'Não importa o quanto apanhem, eles vão continuar usando droga'
Antes, a 'cracolândia' era mais pacífica. A gente conseguia andar com o celular na rua, a gente brincava nessa praça [Princesa Isabel], a gente conseguia trabalhar aqui. Porque a gente aprendeu a viver junto com essa outra realidade das pessoas que estão na rua.
Mas a hostilização do Estado aumentou nos últimos dois anos. Os usuários de drogas também ficaram mais violentos, e a sensação de insegurança só vem aumentando.
Tem muita gente que pensa que é só dar tiro, porrada e bomba nos noias que vai resolver. Mas não é isso. É uma questão de saúde pública e de atenção à população que mais precisa.
São pessoas que estão tentando viver a vida delas, mas não estão encontrando uma oportunidade. Em meio a uma operação policial, ouvi um usuário dizendo: "Pode bater, a gente vai continuar fumando."
Não importa o quanto eles apanhem ou levem tiros, porque estão acostumados com a violência. Eles são usuários, e vão continuar usando droga. O que eles não estão acostumados é com a mão estendida pra eles.
Violência, medo e abandono
Quando estoura a 'cracolândia' [expressão usada para citar o momento em que agentes avançam nas regiões onde há usuários], eles saem alucinados. Eles chutam carros, xingam pessoas, também ficam com medo. Isso vem acontecendo cada vez com mais frequência. E, com isso, também diminuiu a quantidade de pessoas que circulam pelo centro.
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Quero receberEm um dia desses, o meu sogro levou uma martelada e precisou ficar uma semana internado na Santa Casa com o braço quebrado. E foi agredido sem nenhum motivo, entende?
A gente sente insegurança, mas não só pelos nossos bens. Também pelas nossas vidas. Nada garante que essa polícia espalhada pelo centro está aqui para proteger a gente.
Uma menina de uns 20 anos ameaçou me agredir por causa de um cigarro, com uma viatura parada perto. A gente está aqui só tentando sobreviver.
Os clientes deixam de frequentar a região, e os lojistas são obrigados a fechar as portas. A Santa Ifigênia era lotada de clientes. Agora, as pessoas estão abandonando a região. O centro está morrendo. E não temos a quem recorrer, porque ninguém olha por nós.
Luz do helicóptero da TV na janela
Quando a 'cracolândia' estava na rua Vitória, a luz do helicóptero da TV estava na frente da minha janela. E era todo dia. Uma rotina de música alta, churrasquinho, barraquinhas de crack. Era como se eu estivesse lá dentro da 'cracolândia'. Mas não me acostumo. Apenas vivo um dia de cada vez.
Esperança de que a situação vá melhorar nos próximos meses? Zero. Nos próximos anos? Só depois de muito debate, muita conversa e muita reflexão sobre o assunto para que, talvez um dia, surja a resposta para resolver a situação da 'cracolândia'. Mas não conto com isso.
A 'cracolândia' não está só se movendo nos últimos 15 anos. Ela também está crescendo e se espalhando. Nada impede que pessoas que hoje trabalham parem nas ruas. E, uma vez nas ruas, nada impede que comecem a usar drogas para fugir dessa realidade. A projeção é de que a região fique cada vez mais dominada. Até que só tenha droga pelo centro de São Paulo.
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