'Se reclamar, não sai vivo': Escravizados por igrejas denunciam violência
Filho de Ogum, o candomblecista Tomé (nome fictício) diz que buscou forças em seu orixá para enfrentar os quase quatro meses em que, segundo o MPT (Ministério Público do Trabalho), foi escravizado em uma comunidade terapêutica mantida por uma igreja evangélica no Rio de Janeiro.
Ao UOL, o dependente químico em tratamento afirma ter sido submetido a trabalhos forçados sem remuneração, castigos, condições insalubres —como comida estragada e colchões infestados por percevejos— e racismo religioso, ao ter sua fé chamada de "coisa do diabo".
Cinco ex-internos escravizados na Casa Cristã de Reabilitação Alcance Vitória —comunidade terapêutica controlada pelo Ministério Alcance Vitória, em Cosmos, zona oeste carioca— relataram com exclusividade uma rotina de violências física e psicológica e até mesmo ameaças de morte. A identidade deles foi preservada para não colocá-los em risco.
Ao todo, nove ex-internos escravizados foram libertados em abril e em agosto em duas operações do MPT e da Superintendência Regional do Trabalho do Rio, com apoio da Polícia Federal, em comunidades terapêuticas ligadas a igrejas na capital fluminense —sete deles, na Alcance Vitória.
Eu tinha que ficar limpando o salão o dia inteiro. Exigia muito de mim. Toda hora vinha o dono [do mercado] e ficava zombando: 'Limpa direito aqui'. Me tirava como um escravo.
Timóteo (nome fictício), ex-interno
Atraídos por promessas de cura baseada na fé, homens com dependência química —a maioria negros e de baixa renda— se tornaram vítimas de trabalho análogo à escravidão. Nenhum deles recebeu tratamento médico ou psicológico. Em vez disso, foram submetidos a trabalhos forçados na instituição e em comércios e canteiros de obras da região.
Segundo os ex-internos, a remuneração era confiscada pelo pastor Jackson Almeida, responsável pela Alcance Vitória. Ao UOL, ele negou todas as acusações. Almeida, porém, fez acordos com o MPT para pagar indenizações aos ex-internos.
'Tudo ficava na mão dele'
Os dependentes químicos chegaram à comunidade terapêutica indicados por outras igrejas evangélicas. Logo de cara, dizem que tiveram seus documentos pessoais confiscados, e o contato regular com as famílias, interrompido.
Instituições privadas, as comunidades terapêuticas não são estabelecimentos de saúde, mas vem ganhando espaço no acolhimento de dependentes químicos. Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), um decreto as integrou ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.
Cheguei lá num sábado. É um sítio. A paisagem é bonita, tem campo, criadouro de peixe. Eu achei que era mil maravilhas, mas não é. Aquilo lá não é pra ninguém [...] É comer o pão que o diabo amassou.
Lucas (nome fictício), ex-interno
Os cinco ex-internos contam que foram obrigados a trabalhar em comércios da região e a fazer trabalhos domésticos em jornadas exaustivas, que chegavam a 12 horas por dia.
Segundo eles, todo o dinheiro ficava com o pastor Jackson —mais da metade ia para a comunidade terapêutica e dízimo, e o restante, que pelas regras seria deles, permanecia retido.
Eu tinha certeza que não era normal, tudo que tu ganha ter que dividir. A gente ganhava R$ 50 a diária [no mercado]: eram R$ 25 para ele [o pastor] e R$ 22,50 pra gente porque tinha de tirar o dízimo.
Tomé (nome fictício), ex-interno
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Quero receberEle [pastor Jackson] botou a gente pra trabalhar no mercado, prometendo que ia dar um dinheiro. [Quando] chegou uma quantia em dinheiro, eu perguntei: 'Posso ligar pra minha família, mandar um dinheiro?'. Eu tenho um filho. Não podia ligar pra família, não podia mandar dinheiro pro filho [...] Resumindo: tudo ficava na mão dele [do pastor].
Lucas (nome fictício), ex-interno
Revoltado com a exploração, Timóteo (nome fictício) decidiu deixar o local e, por isso, diz ter sido ameaçado de morte.
Ele [pastor Jackson] falou: 'Olha, não vou te deixar ir embora, tem que ficar aqui'. Eu falei: 'Pastor, eu quero ir embora'. Aí ele falou assim: 'Se você ficar reclamando, daqui você nem sai vivo. E sua família não acha nem seu corpo'.
Timóteo, ex-interno
Diante da insistência, o pastor permitiu que ele fosse embora, mas sem levar nenhum centavo a que teria direito pelo tempo de trabalho em um supermercado no Vilar Carioca, favela do bairro de Inhoaíba controlada por uma milícia.
Para mim, o [artigo] 149 do Código Penal ficou caracterizado, que é o trabalho escravo [...] A gente viu condições degradantes.
Guadalupe Couto, procuradora do MPT-RJ
Jackson Almeida afirma que a alegação de ameaça é "claramente falsa, uma vez que todos são livres para ir embora no momento que lhe convir". Também diz que os ex-internos não eram obrigados a trabalhar e tinham os horários de almoço e descanso respeitados.
Ele afirma que metade da diária era encaminhada para manutenção da comunidade terapêutica porque a internação não é cobrada. Já o gasto do restante ficava a critério do próprio ex-interno, afirmou o religioso.
Não peguei dinheiro de ninguém. Eles iam e compravam o que queriam. Alguns mandavam mandar [o dinheiro] para a família.
Jackson Almeida, pastor da igreja Alcance Vitória
Comida estragada, percevejos e jejum
Tomé diz que, com o tempo, passou a ser pressionado a abandonar o candomblé. "Ele [o pastor] dizia que eu tinha que deixar essa vida e que [o candomblé] é 'coisa do diabo'. Eu falava para ele: 'Mas e quem falou que é coisa do diabo?'", relembra. "Entrei em muita disciplina por causa disso."
Segundo os ex-internos, "disciplina" eram castigos a que eram submetidos quando não obedeciam a ordens do diretor ou do pastor da casa.
Ficava no sereno até 4 horas da manhã. No sereno, no castigo. Podia estar chovendo, o que fosse, tinha que ficar de joelho, sem comer nada. Era comida fora da validade e lavar as panelas no poço, de madrugada.
Lucas, ex-interno
Falar com pessoas na rua, reclamar de insetos que infestavam a casa, da comida estragada e até mesmo cultuar orixás eram atitudes passíveis da chamada "disciplina".
Entre os castigos, estavam jejum forçado, mesmo com a rotina de trabalho pesado; lavar louça em um poço sob chuva e, no caso mais grave relatado, um ex-interno recebeu um soco de um funcionário ao reclamar seu dinheiro.
"Só comia comida fora da validade. Era galão azul, aquele galão grande de água, cheio de arroz, de tapuru, cheio de besouro", relata Lucas, que chegou por duas vezes a ter infecção alimentar.
Uma coisa que me marcou muito foi aquele monte de percevejos. Só faltava jogar a gente para fora da cama. Era empesteado. A gente acordava com o braço todo arregaçado, o corpo todo.
Timóteo
Envio para SP e exterior
Após ficar mais de um ano na comunidade terapêutica da zona oeste do Rio, Simão (nome fictício) foi enviado para outro espaço semelhante mantido pela igreja em São José dos Campos (SP) em 2021.
"Lá continuaram os trabalhos que achei complicado também: coletar óleo [de cozinha] de porta em porta." Ele diz que recebia uma agenda com vários endereços para a coleta e que era obrigado a cumprir metas (ao menos 20 litros por dia).
De volta à comunidade do Rio, passou a trabalhar em um lava a jato, onde foi convidado por um bispo evangélico a viver em outra comunidade terapêutica. No entanto, de acordo com ele, as condições eram ainda piores —o dependente químico em tratamento dormia na parte alta do templo, em um colchão no chão, e era submetido a todo tipo de trabalho sem remuneração.
Simão e outro ex-interno foram libertados dessa comunidade em abril após o MPT receber uma denúncia anônima. A partir de seu depoimento, uma nova operação foi organizada para libertar sete escravizados da comunidade Alcance Vitória.
Outro ponto em comum nos relatos são as promessas de envio para o exterior. Eles contam que o pastor Almeida incentivava a ideia de enviá-los para fazer "a obra da igreja" em outras unidades da Alcance Vitória no México e Canadá.
"O tráfico de pessoas ainda é frequentemente associado a casos clássicos, envolvendo por exemplo migração internacional. Temos a impressão de que nas situações de comunidades terapêuticas, contudo, esses crimes podem ocorrer na junção de alguns elementos, como alojamento de pessoas, aproveitando-se da relação desigual de poder e da vulnerabilidade da pessoa usuária de substâncias", diz Yasmim França, coordenadora e psicóloga no Projeto Ação Integrada: Resgatando a Cidadania (MPT e Cáritas-RJ). A Cáritas participou do atendimento dos escravizados que foram libertados nessas operações.
Após a autuação dos fiscais do trabalho na Alcance Vitória, o MPT promoveu termos de ajustamento de conduta e fixou multas para pagamento aos trabalhadores, além das verbas trabalhistas.
O MPT também denunciou ao MP do Rio a situação de dois trabalhadores que atuavam só nos serviços do sítio. Segundo o pastor Almeida, a comunidade está com as atividades paralisadas.
Ele também diz que a "alimentação era saudável, sem nenhum histórico de doenças por ela ou pelas condições das instalações" e nega a retenção de documentos pessoais dos internos e o que chamou de "restrições a pessoas de outras religiões" sobre os relatos de racismo religioso.
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