Cidade dos homens: Serra Azul é o paraíso de ex-funcionários do Carandiru
Maurício Businari
Colaboração para o UOL
09/01/2024 04h00
O ano era 2001. A Casa de Detenção do Carandiru havia fechado, deixando um legado de terror e sangue na memória dos funcionários. Com a extinção do presídio, o jeito era buscar realocação em outras unidades do estado, cujo governo acenava com duas possibilidades: a Penitenciária de Oswaldo Cruz, a 558 km da capital paulista, ou a de Serra Azul, a 317 km.
Assim, por ser mais próxima da capital, Serra Azul se tornou a cidade escolhida por muitos dos ex-funcionários do Carandiru. Com suas ruas estreitas, espalhadas por uma área que não ultrapassa uma dezena de quarteirões, o município tornou-se o local perfeito para o grupo; um exílio em meio a uma floresta de eucaliptos para servidores exauridos pela tensão e o terror vivido nos anos de ponto batido na Casa de Detenção.
"Alguns diretores-gerais convidaram funcionários para acompanhá-los em suas novas posições. Acredito que cerca de 40 funcionários do Carandiru, incluindo eu, escolheram mudar para Serra Azul, alguns com suas famílias", contou ao UOL Ronaldo Mazotto, agente carcerário que trabalhou por mais de duas décadas no Carandiru.
O presídio instalado no município era para ser uma cadeia geriátrica. Com o tempo, o perfil da penitenciária mudou, de presos mais velhos para os do "seguro", também conhecidos como "jack", jurados de morte por brigas entre facções ou criminosos sexuais. O espaço também aumentou: no início contando com um único prédio, passou a ter três.
Quem mora em Serra Azul não quer mais deixar a cidade. Ex-funcionários da Casa de Detenção ouvidos pelo UOL são unânimes em dizer que são apegados demais à tranquilidade e à qualidade de vida. Sem falar que o local é cercado por muito verde, com cachoeiras e rios ao redor. E, é claro, comida boa, feita no fogão à lenha, além de um povo muito receptivo e feliz.
"Vim para cá em 2002. Trouxe de São Paulo a minha família, meus filhos, que eram na época adolescentes e começaram a estudar aqui na cidade de Serra Azul. Hoje já são adultos, formados", conta a agente penitenciária Cacilda Santiago.
"Me aposentei em 2019, consegui meu imóvel próprio. Eu não tenho interesse de voltar para São Paulo, não. Aqui é muito bom, é tranquilo, não é perigoso como São Paulo".
O casal Dirceu e Regina Aparecida Celestino Schäufer-Rodrigues vive há 23 anos em Serra Azul. Eles se conheceram trabalhando na penitenciária paulistana, no que consideram ter sido "uma felicidade em meio a tanta coisa ruim". Juntos, tiveram dois filhos, além dos dois que Regina já criava. Quando a Casa de Detenção foi desativada, o casal soube da oportunidade de mudar-se para a cidade.
"Encontramos uma cidade pacata, onde a gente poderia criar nossos quatro filhos com segurança. E assim foi. Moro aqui há 23 anos. Aqui tem rios, cachoeira, ranchos, churrascos em família. É um lugar muito gostoso. Tem muitas opções, a gente costuma acampar próximo aos rios e cachoeiras, não me vejo mais em São Paulo. Às vezes, até passeamos por lá, mas morar nunca mais", afirma Regina.
Dirceu, o marido, endossa as palavras da companheira. E acrescenta que a mudança para a cidade melhorou consideravelmente a qualidade de vida e, consequentemente, o entrosamento do casal. "Foi bastante importante para nós, como casal, que tivéssemos mais tempo para nós, que pudéssemos viver bem, melhorar as nossas condições. Hoje temos quatro filhos, três netos. Todos criados na boa vida daqui", contou.
"Em Serra Azul não tem feira, você vai buscar quase tudo no quintal das pessoas, que a própria pessoa vende, a pessoa planta, cria vacas para obter leite, para obter carne. É difícil você achar carne congelada lá. Não existe poluição, não tem trânsito, não existe um farol nem sequer na cidade", acrescenta Mazotto.
Seita Satânica
A única vez em que Ronaldo Mazotto se recorda da paz ter sido brutalmente perturbada ocorreu alguns anos após sua chegada a Serra Azul e envolve um membro da famigerada Seita Satânica, um culto que incluía rituais de adoração ao demônio e que chegou a rivalizar até mesmo com o PCC durante os anos 90.
A notícia da chegada do presidiário, conhecido por todos como Lúcifer, se espalhou pela cidadezinha. Ele estava tendo problemas no sistema penitenciário e já não havia lugar para ele ficar em outros presídios. Por essa razão, ele acabou permanecendo na penitenciária de Serra Azul, no isolamento. Alguns dias após sua chegada, Lúcifer conseguiu se aproveitar de um momento de descuido dos agentes e fez suas primeiras vítimas.
"Ele pegou cinco prisioneiros como reféns e acabou matando eles", lembra o agente, que se tornou um historiador local. Em seu acervo, ele possui milhares de imagens, objetos e documentos que contam a história do Carandiru e também da transformação de Serra Azul com a chegada dos servidores. Que, por sua vez, também tiveram suas vidas transformadas.
"Nós fizemos amizade, criamos um grupo inseparável. Todos os meses, nos reunimos para comer, beber e conversar. Antes era na minha casa, mas agora escolhemos sempre um local novo, para não ficarmos 'marcados' pela criminalidade", diz o agente, que hoje tem uma filha que ainda vive em Serra Azul e se divide entre a casa da mãe, na capital paulista, e a casinha que tanto ama na cidadezinha que o acolheu.
Cidade dos homens?
Serra Azul está entre as 10 cidades brasileiras com maioria da população masculina, segundo o IBGE — com uma proporção entre homens e mulheres de 178,54 para 100.
Ao todo, a cidade conta com três penitenciárias masculinas, que somam 4.023 homens. Os habitantes encarcerados são pouco mais de 31,56% do total da população, que é de 12.746 moradores.