'Rua das Flores': como era organizado o pavimento gay do Carandiru

A "Rua das Flores" era um andar inteiro da Casa de Detenção do Carandiru, que reunia travestis e homossexuais, grupo extremamente respeitado entre os presidiários da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo. As "meninas", como eram chamadas, andavam armadas com facas e dominavam o pavilhão 5, o mais populoso — e também o mais perigoso — do complexo.

No primeiro andar do pavilhão, havia celas de punição semelhantes a masmorras, onde os infratores internos ficavam trancados por cerca de trinta dias, por crimes como posse de drogas, armas, desacato, e assim por diante. Era a "solitária".

No terceiro andar, eram alojados estupradores, justiceiros (assassinos profissionais) e indivíduos expulsos de outros pavilhões. O quinto andar era chamado de "amarelo" e era um lugar precário onde muitos presos estavam ameaçados de morte. Eles não saíam para o banho de sol, o que fazia com que sua pele adquirisse uma coloração amarelada, originando o apelido do setor.

Em meio a tanto perigo, no quarto andar do pavilhão, viviam as meninas da "Rua das Flores", a "França do Carandiru", como explica o ex-agente penitenciário do complexo Ronaldo Mazotto Lima, 55, que coleciona memórias sobre a penitenciária. A referência ao país estrangeiro é uma metáfora ao glamour das casas noturnas de Paris.

"Lembro-me de uma vez em que parei um detento do Pavilhão 9 e perguntei de onde ele vinha. Ele parecia animado, como se estivesse vindo de uma festa. Perguntei novamente, e ele disse: 'Eu estava na França, nas boates, bebendo e me divertindo'. Na verdade, muitos detentos passaram pela 'Rua das Flores", contou ao UOL.

Nessa área, segundo Mazotto, viviam os detentos que se assemelhavam a mulheres, principalmente aqueles com seios, cabelos longos e traços femininos. "Naquela época, não havia a mesma compreensão dos termos LGBT, então eles eram chamados de travestis, como eram conhecidos na linguagem prisional", explica.

Para viver no quarto andar do pavilhão 5, na "Rua das Flores", os detentos passavam por uma avaliação e precisavam se encaixar no perfil. Havia três tipos de homossexuais na Casa de Detenção: aqueles que já se assumiam antes de entrar, aqueles que se descobriam lá dentro e aqueles que eram forçados por outros detentos.

No último caso, os presos não se identificam como homossexuais, mas acabam vítimas de abuso por parte de outros presos. Alguns presos que enfrentam problemas diversos, sem serem considerados graves, são coagidos pelos colegas a se envolverem em atividades homossexuais durante o tempo que passam na prisão.

Em dias de festa, as "meninas" da Rua das Flores se "montavam" e faziam desfiles
Em dias de festa, as "meninas" da Rua das Flores se "montavam" e faziam desfiles Imagem: Acervo Pessoal/Mazotto Lima
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Estética e respeito

Não existiam regras específicas para a "Rua das Flores". As regras gerais da prisão se aplicavam a todos os pavilhões. Os detentos com tendências homossexuais geralmente não sofriam maus-tratos, pois desempenhavam funções de apoio, como limpeza e preparação de alimentos.

Homossexuais e travestis, conta o ex-agente, eram valorizados no Carandiru. Eram eles que davam "aquele talento que uma mulher daria numa casa", o toque "feminino" que faltava entre os prisioneiros. Em todos os pavilhões havia homossexuais. Porém, na "Rua das Flores", a preocupação com a estética era evidente.

"As celas eram bem decoradas, tinha coraçõezinhos de papel para todo lado, estavam sempre repletas de flores. Todos sabiam que era um pessoal mais animado, um pessoal de mais alto astral", comenta.

Mazotto conta que, em dias de festa, as "meninas" se montavam e faziam "desfiles de moda" para os detentos, e eram muito festejadas e aplaudidas. Elas também faziam participações em shows de cantoras como Gretchen e Rita Cadillac, as duas mais queridas pelos internos.

Brigas e incidentes violentos poderiam ocorrer na "Rua das Flores" como em qualquer outra parte da prisão. As "meninas" andavam armadas, com facas, estiletes e giletes, apesar de isso ser proibido e passível de punição. Elas eram consideradas mais vulneráveis e os maus-tratos praticados contra elas podiam ser punidos com a morte.

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"Apesar disso, elas viviam num alto astral, faziam comidas especiais, bolos para entregar a outros pavilhões, cuidavam das celas. Na verdade, existia uma harmonia entre as "meninas" e o restante dos detentos. E ninguém era discriminado e nem sofria repressão devido à sua sexualidade", afirma Mazotto.

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