Ex-carcereiro relembra 'Rua 10' do Carandiru: 'Arena com corpos no chão'
O dia a dia dos detentos no extinto complexo prisional do Carandiru era repleto de histórias de violência e morte. Ali valia a lei do mais forte e os ajustes de contas eram realizados sem a interferência do mundo exterior. A "Rua 10", um local onde às segundas-feiras realizavam-se verdadeiros banhos de sangue em nome da "justiça" entre os detentos, era um espaço tão temido que muitos achavam ser apenas uma lenda urbana.
Mas o ex-agente penitenciário Ronaldo Mazotto Lima, 55, que trabalhou 32 anos no sistema prisional de São Paulo (22 deles no Carandiru), garante que ela existiu. E que não havia apenas uma, mas várias "Ruas 10".
Hoje aposentado, Mazotto coleciona histórias, fotografias e objetos utilizados nos tempos em que o Carandiru fervilhava com seus pavilhões repletos de criminosos de todos os tipos. Ele é proprietário do maior acervo particular sobre a Casa de Detenção paulistana. E contou, em entrevista ao UOL, como era seu dia a dia nos corredores sombrios da prisão e as cenas terríveis que presenciou nas famigeradas "Ruas 10".
Mazotto conta que chegava todos os dias ao Carandiru por volta das 5h30. Ele batia o cartão de ponto às 6 horas. Ele era responsável por dirigir os carcereiros do pavilhão 9 que, na época, contava com aproximadamente 2.300 presos. Foi o pavilhão onde, em 2 de outubro de 1992, 111 presos foram mortos durante uma operação da Polícia Militar que ficou conhecida como o Massacre do Carandiru.
Nesse pavilhão, ficavam os réus primários, que tinham idade entre 18 e 30 anos. Um levantamento feito tempos após o massacre mostrou que 84 dos 111 assassinados ainda esperavam por uma sentença definitiva da Justiça ou eram presos provisórios, ou seja, os presos sem sentença.
Todos os dias, eu subia até o andar do pavilhão e realizava uma contagem dos presos. Abria a cela, entrava, contava, fechava. Não poderia faltar nenhum preso da noite anterior. Depois, soltava os presos para o banho de sol, onde eles iam ficar o dia inteiro soltos. Eles iam para o campo, para o estudo, para a escola, para a igreja, para o advogado, para o médico, e eu ficava aguardando a hora que retornassem, às 16 horas. Daí, eu trancava de novo as celas e fazia uma nova contagem. Se faltasse um detento, não podia ir embora. Tinha que sair procurando onde ele estava. Ronaldo Mazotto Lima
Pontos cegos
As "Ruas 10" já existiam quando Mazotto foi trabalhar no complexo, aos 18 anos. Ele conta que seu pai e seu tio, que trabalharam décadas no Carandiru, já reuniam histórias sobre os acertos de conta sangrentos que ocorriam nessas "arenas" criadas pelos detentos. Que nada mais são do que corredores localizados em "pontos cegos" do presídio, áreas em que a visualização dos guardas ficava dificultada.
Mazotto explica que as escadarias se concentravam em um único lado dos edifícios, que eram blocos com uma área grande e aberta no meio, um fosso. E essas escadas ficavam viradas para dentro do presídio. A "Rua 10" se localizava no lado oposto das escadas de acesso os andares. Quando o funcionário chegava a um andar, não conseguia visualizar esse corredor. Ele teria que contornar o fosso para alcançar o outro lado, escolhido como arena pelos presos exatamente por essa razão.
Se tivesse alguma coisa acontecendo na "Rua 10", quando o funcionário chegasse na escada, os presos avisavam e todos se escondiam. Geralmente, quando eu chegava lá, os corpos já estavam no chão, já estavam ensaguentados, já estavam mortos. Toda segunda-feira existiam mortes na Rua 10, porque ali era o lugar da cobrança.
Origem do nome
Existem duas hipóteses apontadas por parentes e amigos de Mazotto que lá trabalharam antes, para o surgimento dessas áreas de ajustes de contas no Carandiru. Uma delas diz que, na década de 60, ocorreu uma das primeiras chacinas dentro do presídio, em um dos corredores que ficam do lado oposto das escadas. Dez presos foram mortos e por isso batizaram o local como "Rua 10".
A segundo hipótese diz respeito à configuração dos pavilhões. Nos corredores que ficam do lado interno do presídio, ou seja, os cujas celas dão para o fosso, a quantidade de celas era menor. A numeração começava na escadaria e seguia em direção ao lado oposto, fazendo com que a primeira cela nesse corredor tivesse o número 10. A cela 10 sempre estava localizada nesse corredor, no lado oposto ao da escada.
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Quero receberCenas aterrorizantes
As cenas que Mazotto já presenciou nas "Ruas 10" foram as mais aterrorizantes que ele vivenciou durante as décadas em que trabalhou como agente penitenciário. "Já vi brigas com mais de 15 detentos, já vi cabeças arrancadas, coração, tudo coisas que aconteciam com esses acertos de contas na "Rua 10".
Porém, existe uma cena que Mazotto nunca conseguiu tirar da lembrança. Ele era jovem, havia acabado de começar a trabalhar no Carandiru. Ele afirma que os funcionários souberam de uma briga acontecendo em uma "Rua 10" no pavilhão 9 e ele correu com os colegas para tentar evitar o pior, mas quando chegaram já era tarde.
"Foi uma cena aterrorizante. Havia muitos presos, dos dois lados dos corredores, gritando, nervosos. Quando nós chegamos lá, eu vi um preso dando uma facada no outro, deitado no chão, coberto de sangue, acho que falecido já. E a gente não podia fazer nada, porque eram 500 presos para dois, três funcionários cuidarem. Aquilo me marcou por muito tempo, pensei até em desistir de trabalhar ali. Mas, depois, a gente acaba se acostumando".
As brigas e acertos de contas podiam ocorrer por motivos diversos, incluindo desavenças pessoais. Como, por exemplo, quando um detento olhava para a mulher de outro nos dias de visita. A maioria, ocorria por dívidas de drogas. Delitos banais, como roubar cigarros de alguém, também eram resolvidos nas "Ruas 10".
Mas também havia casos em que as disputas eram decididas pelos integrantes da "faxina". As "faxinas", segundo Mazotto, eram grupos hierárquicos que comandavam os pavilhões. Em um dos métodos de acerto de contas proposto por esses grupos, os detentos que tinham desavenças ficavam nus, e eles ficavam atados um ao outro, com uma camiseta amarrada nos punhos esquerdos. Na mão direita, cada um portava uma faca e a briga começava. Só terminava quando um dos rivais estivesse morto.
Mazotto afirma que as mortes por motivos banais foram diminuindo à medida que o PCC (Primeiro Comando da Capital) começou a assumir o controle do presídio. Seus integrantes queriam evitar as punições impostas pelos crimes cometidos nas "Ruas 10", como suspensão de alimentação ou de banho de sol. Os chefes do PCC dentro do presídio decidiam quando uma briga poderia ocorrer ou não.
A diretoria do Carandiru sempre soube da existência das "Ruas 10", mas, segundo Mazotto, não havia muito o que se pudesse fazer para impedir os banhos de sangue. Não havia efetivo, pois seria preciso colocar ao menos um funcionário em cada andar dos pavilhões para tomar conta da "Rua 10". E assim as arenas para os acertos de contas resistiram até ao Massacre do Carandiru e seguiram até o dia de sua desativação, em 9 de dezembro de 2002.
Hoje aposentado, Mazotto trabalha para manter a memória de um dos presídios mais temidos do Brasil. Ele conseguiu reunir mais de 5.000 objetos que recolheu junto aos presos, como trabalhos manuais, artesanatos, documentos, armas apreendidas. Só de fotos, são mais de 2.000.
"Eu tenho também muitas horas em vídeo da rotina, de tudo o que acontecia lá dentro. Hoje eu busco parcerias para poder tocar esse projeto, poder montar exposições em escolas, universidades, museus. Preciso também de ajuda para concluir um documentário sobre o Carandiru, porque essa é uma história que precisa ser contada, não pode ser esquecida".
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