'Água destrói planos': o drama da cidade submersa que quer mudar de lugar
Abinoan Santiago
Colaboração para o UOL
13/03/2024 04h00
Desde que se mudou para Brasiléia, no Acre, há oito anos, Janaína Souza, 23, deixou de renovar os móveis da casa por medo de perder tudo para as enchentes, fenômeno que se tornou frequente onde mora nos últimos anos. 75% da área urbana ficou debaixo d'água em 2024 —a situação fez emergir a proposta de "mudar" a cidade de lugar.
Janaína foi uma das tantas moradoras de Brasiléia a perder praticamente tudo na enchente de 2024, considerada a maior da história da cidade. O rio Acre subiu 15,58 metros, deixando 1.276 desabrigados e 2.220 desalojados no município, que é limítrofe com Cobija, na Bolívia.
'Apenas o básico'
Janaína conta que as enchentes a fizeram deixar de ter vontade de planejar a compra de móveis. Já é a terceira que ela enfrenta na cidade. Para Janaína, se for para perder tudo, é melhor não ter quase nada. "A gente passou a ter apenas o básico em casa."
"Não podemos fazer planos aqui, reformar uma casa, construir um quintal bom, comprar móveis de qualidade. Se a geladeira estragar, não dá para comprar uma nova porque a água pode levar. Sempre compramos de segunda mão", diz ela.
A gente nem faz mais planos de curto prazo. Claro que muitos fazem, mas eu prefiro não ter planos porque a água destrói tudo. Janaína Souza, moradora de Brasiléia
Janaína, que mora no bairro Samaúma, um dos mais atingidos de Brasiléia, viu a água alcançar praticamente o teto de casa. Ela teve de se mudar temporariamente para um dos 16 abrigos montados, mas retornou para casa com o marido na quarta-feira passada.
Agora deseja sair de lá o quanto antes para um terreno em um bairro mais alto ou ser contemplada com uma casa popular planejada com a realocação prometida. "Eles [autoridades] querem fazer essas casas para tirar o povo dos bairros que alagam. É um sonho. A expectativa é alta, tenho fé em Deus. Mas também preciso fazer meu pezinho de meia para, caso não saia, tentar comprar um terreno. O que eu quero é sair."
Reconstrução de Brasiléia
Ainda não há prazo para a construção de casas populares e realocação de prédios públicos em Brasiléia, embora as grandes enchentes estejam mais frequentes, afetando não apenas casas de moradores, mas prédios da administração pública. Ao todo, 17 imóveis de órgãos públicos sofreram danos.
Na visita da comitiva do governo federal à cidade, em 4 de março, a prefeita Fernanda Hansemm (PP) citou que equipes vão analisar os terrenos mais altos para reconstruir Brasiléia. Ela calcula que a cidade foi atingida por quatro enchentes de grandes proporções nos últimos 12 anos.
A cidade tem de se preparar para as mudanças que chegaram. Vamos colocar toda nossa equipe para trabalhar na área de engenharia (...) para montar o plano de reconstrução de Brasiléia.
Prefeita Fernanda Hansemm (PP)
Brasiléia, como outros municípios amazônicos, foi estabelecida à margem de rio. Mesmo tendo o 7º maior território do Acre, sua área urbana, principal afetada, se concentra na passagem do rio Acre, ocupando somente 6,63 km quadrados do total de 3.928 km quadrados de área.
A gente precisa colocar a pedra fundamental da cidade em uma parte alta, se não, daqui a 11 meses voltamos ao mesmo cenário. O poder público não tem condições de conviver com isso.
Governador Gladson Camelli, em visita de comitiva do governo federal
'Eu mudaria na hora'
Situação semelhante à de Janaína vive Isadora Cardoso, de 39 anos. Ela vende roupas e mudou para Brasiléia no fim de 2023 para começar os estudos de medicina em uma faculdade de Cobija, um dos destinos acadêmicos bolivianos na área para brasileiros.
Logo no primeiro ano em Brasiléia, a estudante já teve de lidar com a maior enchente da cidade. Ela mora no centro com o marido e os dois filhos, de 10 e 20 anos, e viu sua casa ser inundada quase até o teto.
Apesar da promessa sobre a realocação da cidade, Isadora considera que isso ainda é algo distante."Ainda tem de projetar as casas populares para uma parte mais alta da cidade. Minha casa não está mais valendo muita coisa por causa da localização. Eu mudaria na hora, ainda mais devido aos aluguéis inflacionados por causa dos estudantes da fronteira com a Bolívia. Eu iria na mesma hora para uma casa popular."
A estudante, que até quinta-feira (7) estava em um abrigo, ainda buscava alternativas para retomar a vida. "Perdi duas camas de solteiro, uma cama de casal, geladeira, fogão, mesa de madeira e outras coisas. Perdi também um pouco de mercadoria, mas preciso recomeçar de alguma maneira porque dependo das vendas, mesmo com Brasiléia nessa situação."
Igreja tomada pela água
O videomaker Gabriel da Conceição, de 25 anos, viu amigos, colegas de trabalho e clientes perderem praticamente tudo. A igreja evangélica que frequenta também foi tomada pela água. Gabriel chegou há pouco tempo em Brasileia, em 2019.
Para ele, a realocação é algo distante. "Para imediato deveria ter outro ponto. Construir moradia social para grande parte da cidade é algo que dura tempo. Deveriam sentar e ver uma forma mais rápida de solucionar."
Gabriel lamenta que enquanto a promessa não se concretiza, os moradores terão de lidar com o cenário de perdas. "A cidade fica acabada, destruída."