Editora da USP recusa livro de memórias do alojamento de alunos na ditadura

A Edusp (Editora da USP) recusou a publicação de um livro que aborda as memórias dos alunos que moraram no Crusp (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo) de 1963 a 1968, durante a ditadura militar.

O que aconteceu

O parecer contrário à publicação do livro "Rito de passagem: A história vertiginosa do Crusp" cita que o texto não tem escrita acadêmica, mas "é interessante por certo ineditismo". Um grupo de cerca de 90 ex-alunos da USP pede a aprovação da obra — eles dizem ter organizado um abaixo-assinado com mais de 200 assinaturas de pessoas ligadas à academia (os nomes não foram divulgados).

"Obra está mais para relato jornalístico e memorialístico do que para obra analítica", diz trecho do parecer. Além disso, o documento afirma que o livro apresenta uma "coletânea de curiosidades sobre as pessoas que ali moraram, sobre relacionamentos, perrengues, pequenos problemas do cotidiano, em vez de uma obra crítica sobre o assunto".

O autor do livro, o jornalista Jason Tércio, defende que o material apresentado é inédito. Ele argumenta não se tratar de um material acadêmico, que, segundo o autor, deveria ser produzido "à medida que os fatos sejam revelados".

A primeira negativa da Edusp ocorreu em agosto de 2022. O autor recorreu da decisão e pediu uma nova análise. "O parecer elogia tudo, mas decide contra apenas por falta de análise acadêmica", justificou Tércio ao Conselho Editorial.

Em dezembro do mesmo ano, a editora voltou a recusar a publicação do livro. "Apesar das explicações fornecidas, o Conselho Editorial não recomendou a publicação, tendo em vista os inúmeros compromissos assumidos anteriormente pela editora, os quais impossibilitam o comprometimento com a publicação de mais essa obra", diz carta assinada por Sergio Miceli, diretor-presidente da Edusp.

Um novo pedido de reconsideração foi feito no ano passado. Em nota enviada ao UOL, Miceli afirmou que a editora decidiu encaminhar o livro a um segundo parecerista. "Este segundo parecer ainda não foi analisado pelo Conselho, o que deverá ocorrer em sua próxima reunião, e a decisão será prontamente comunicada ao autor", afirmou.

Os livros são analisados por avaliadores externos, professores da USP ou de outras universidades, além de especialistas no tema da obra. "O Conselho Editorial decide com base nos pareceres sobre a aceitação ou não dos trabalhos", explica Miceli. O catálogo da editora, além da produção científica da própria universidade, contempla obras de diferentes áreas.

Ex-alunos da USP ouvidos pelo UOL dizem que a universidade tem um "esqueleto no armário que se recusa a retirar" — numa referência à invasão e fechamento do Crusp pela ditadura e o papel da universidade. A Edusp não comentou a declaração. O grupo de ex-moradores do Crusp colaborou com a produção do livro dando depoimentos e documentos da época.

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A publicação deste livro é também uma espécie de reparação, já que o Crusp foi invadido pelo Exército no dia 17 de dezembro de 1968. Jovens foram privados de moradia. Foi uma das grandes injustiças do período da ditadura
Jason Tércio, autor do livro

O autor foi capaz de relacionar as experiências vividas pelos estudantes à conjuntura política e social do Brasil nos primeiros anos da década de 1960, utilizando uma linguagem leve e direta, o que permite uma leitura agradável e rápida. A obra traz fatos interessantes sobre os primeiros anos de convivência estudantil no Crusp, ressaltando a postura da USP em relação ao espaço e seus habitantes e as reações da ditadura aos estudantes e aos grupos políticos representados naquele espaço.
Trecho do parecer que cita aspectos positivos do livro

Tanque do Exército invade o Crusp em dezembro de 1968
Tanque do Exército invade o Crusp em dezembro de 1968 Imagem: 17.dez.1968/Folhapress

Uma história não contada

Os ex-alunos justificam que a publicação do livro deve acontecer pela Edusp pois se trata de um registro histórico da própria USP. "É um ato político e também de esclarecimento para sociedade, é uma forma de dar visibilidade para esse assunto", disse um dos ex-moradores do Crusp, na condição de anonimato.

Histórias sobre o alojamento estudantil já foram publicadas, mas nunca pelo ângulo da ditadura militar, afirmam alunos e o autor. "A obra começa pelo início do Crusp, porque a moradia estudantil já fazia parte do projeto arquitetônico da USP", conta Tércio.

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A invasão dos militares em 1968 é o ponto auge da obra, segundo Tércio e os ex-alunos ouvidos pela reportagem. O autor afirma que detalha como os estudantes foram levados à delegacia e ficaram sem moradia, já que o conjunto residencial foi fechado após essa operação.

Antes do fechamento do Crusp, o local era usado como uma espécie de "entidade estudantil paralela". Tércio afirma que a moradia era usada também de coletivo cultural antes dos militares prenderem mais de 700 estudantes.

O livro também aborda as primeiras crises do modelo de moradia. Muitas delas, segundo o autor, foram provocadas em decorrência da ditadura. Estudantes de outros estados e de cidades do interior, de baixa renda, são os públicos beneficiados com o conjunto residencial.

A USP criou um serviço de psicólogos para os moradores, porque a perseguição continuou e muitos tiveram problemas de saúde mental

A Edusp é altamente qualificada e acredito que um livro como esse engradeceria. Não tem nenhum obstáculo que impeça a publicação dessa obra.
Jason Tércio, autor do livro

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