Sem câmeras e sem testemunhas ouvidas: como foi a ação da PM com 56 mortes
A Operação Verão, resposta do governo de São Paulo ao assassinato de três policiais, foi encerrada no último dia 1º com um saldo de 56 mortes na Baixada Santista, e divergências de versões sobre os fatos narrados pela Polícia Militar, agora investigadas pelo Ministério Público.
Sem imagens de câmeras corporais nas fardas dos agentes, e uma lista de suspeitas de ilegalidades, o secretário de segurança Guilherme Derrite deu por encerrada a operação afirmando que cumpriu a promessa de "asfixiar financeiramente o crime organizado", ao citar o PCC, facção criminosa que movimenta ao menos R$ 6 bilhões por ano com o tráfico internacional de drogas. Ele também não reconheceu excessos.
Segundo o secretário, a PM conseguiu causar prejuízo ao PCC ao apreender 2,6 toneladas de drogas e 119 armas de fogo. Especialistas ouvidos pelo UOL estimam que essa apreensão representa menos de 1% da movimentação anual da facção criminosa paulista.
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Para asfixiar financeiramente o crime organizado, não basta retirar drogas e armas de circulação. É preciso fazer investigações sobre lavagem de dinheiro, prender lideranças e conseguir ações de cooperação internacional com Bolívia, Peru e Colômbia, que são os principais fornecedores de drogas para o Brasil.
Ivana David, desembargadora do TJ-SP e especialista em investigações sobre o crime organizado
Mas a violência das mortes, e a fragilidade de algumas explicações, é o que tem saltado aos olhos do Ministério Público, da Defensoria, e das entidades que acompanham as ações de segurança pública no Brasil.
A vítima número 56 foi a cabeleireira Edneia Fernandes Silva, de 31 anos, mãe de seis filhos. Foi morta ao ser atingida por um tiro na cabeça na tarde de 27 de março, em Santos. Segundo a PM, ela foi baleada ao ser atingida em meio a uma troca de tiros entre agentes e suspeitos em fuga.
Uma testemunha, porém, disse ter visto só um PM atirando.
Eu vi muito nítido o policial atirando. Quando eu olhei, a Edneia estava caída em cima da mesa. Quando coloquei a mão nela, o sangue escorreu pelo meu braço. Pedi ajuda, mas nenhum dos policiais prestou socorro.
Foi logo depois da morte de Edneia que a Operação Verão foi encerrada, embora a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo negue o nexo entre as duas coisas.
'Como estaria armado se ele não consegue enxergar?'
Algumas mortes justificadas pela PM chamam a atenção pelo perfil das vítimas: um deles, Hildebrando Simão Neto, tinha apenas 20% da visão em um dos olhos e estava no quarto de casa quando a PM entrou no local atirando no dia 7 de fevereiro, em São Vicente. Segundo a corporação, ele estava armado e tinha um fuzil embaixo da cama.
Hildebrando tinha uma vida de limitações por causa da deficiência visual, segundo a família. Objetos não podiam ficar no meio da casa, para evitar tropeços. Um parente sempre o acompanhava ao banheiro para tomar banho no segundo piso do imóvel, já que ele havia caído das escadas tempos atrás. Para sair de casa, só se estivesse acompanhado. Mesmo assim, era impossível impedir imprevistos.
"O meu filho estava sempre com os dedos dos pés machucados, de tanto tropeçar. Como estaria armado se ele não consegue enxergar?", questiona a mãe de Hildebrando, que preferiu não dar o nome.
A família dele entregou laudos médicos à Ouvidoria das polícias de São Paulo e ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Neles, comprovou que o jovem tinha deficiência visual. E, com base no documento, contestou a versão da PM.
O Hildebrando tinha perdido a visão de um dos olhos e enxergava pouco no outro. A narrativa dos policiais de que ele teria atirado parece fantasiosa diante dessa limitação. É preciso que se exija uma investigação isenta e imparcial do Ministério Público nesse caso.
Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Sangue entre os tijolos
O UOL esteve na casa onde Hildebrando foi morto com Davi Gonçalves Júnior. Na parede, ainda estavam os buracos deixados pelos tiros de fuzil da PM, com sangue entre os tijolos aparentes.
Minutos depois de retornar de uma jornada de trabalho, a mãe de Hildebrando disse que se preparava para servir um café com pão aos filhos na cozinha quando foi surpreendida por um grupo de ao menos cinco policiais militares da Rota.
Com os agentes na sala, tentou acalmar os ânimos dizendo que ali era casa de família. Sob a mira de fuzis, ouviu de um deles a pergunta: "Só quero saber quem está na casa?". Ao serem informados que o filho mais velho dela estava em um cômodo nos fundos, os agentes da tropa de elite da PM caminharam pelo corredor em direção a ele.
A mãe chegou a gritar, dizendo que Hildebrando tinha deficiência visual. Mas os policiais seguiram em frente. Em seguida, escutou o primeiro tiro. Ao todo, foram cinco disparos de fuzil dados à queima-roupa por dois policiais, de acordo com o boletim de ocorrência. Hildebrando teve a morte constatada pelos médicos no dia seguinte. Ele deixou um filho de 4 e uma filha de 3 anos.
Meus netinhos perguntam: 'vó, cadê o papai? Eu falo que o papai tá no céu, que virou estrelinha. Aí, eles perguntam: "vó, por que o papai não nos levou com ele?
mãe de Hildebrando
Dois dias depois, o mesmo se repetiu com o motoboy Leonel Andrade Santos, que não caminhava sem o auxílio de muletas por um problema em uma das pernas. Mesmo assim, teria atirado frontalmente contra dois policiais armados em Santos, segundo a versão da PM.
Meu marido não tinha arma. Era pai de família, que costumava levar as crianças para a escola. Os policiais mentiram. Ele nem teria como segurar as muletas e um revólver ao mesmo tempo. Era para a polícia proteger a gente. Mas o que vamos fazer se eles vêm para matar?
Beatriz da Silva Rosa, esposa de Leonel Andrade Santos
Uma foto feita por uma moradora mostra Leonel sentado ao lado das muletas às 20h03 de 9 de fevereiro no Morro São Bento, em Santos, uma hora antes de ser morto. Em vez das muletas, a PM diz que ele segurava uma arma e que atirou na direção dos agentes para justificar os dez disparos de fuzil feitos por dois agentes em uma ação que também matou Jefferson Ramos Miranda, 37.
Mesmo roteiro e 'receita pronta'
O argumento da Secretaria da Segurança Pública de troca de tiros com suspeitos foi o mesmo utilizado para justificar todas as ações que resultaram em mortes na operação. Na maioria delas, a vítima estaria atirando nos policiais, e por isso teriam sido alvejadas. Esse foi o padrão utilizado em 17 boletins de ocorrência da Operação Verão analisados pelo UOL.
Os boletins de ocorrência são um 'copia e cola', que seguem o mesmo roteiro. Há uma série de elementos que nos leva a crer que não tem ocorrido confrontos. Como há confronto se apenas um lado atira?
Cláudio Silva, ouvidor das polícias de SP
Se houvesse imagens das câmeras corporais dos policiais, seria mais fácil constatar o resultado. Ou, a análise da polícia científica para fazer a perícia das mortes no local dos supostos confrontos. Outra informação se repete nos boletins relatados pela PM: as vítimas teriam sido resgatadas com vida, mas não resistiram aos ferimentos a caminho do hospital.
Sem os corpos no local dos disparos, a perícia fica impossibilitada de determinar como foi a dinâmica dos tiros dados por policiais e suspeitos, um procedimento de praxe em locais de crime. E, com isso, ficam reduzidas as chances de esclarecimento do caso.
Os registros da PM são repetitivos, falando de troca de tiro, morte, drogas e armas encontradas com suspeitos. É uma repetição que parece uma receita pronta.
Cássio Thyone Rosa, perito criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O mesmo tipo de justificativa foi repetida em 15 casos de mortes questionadas por e-mail pelo UOL entre os dias 5 de fevereiro e 3 de abril à Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. As respostas chegaram, em média, 40 minutos depois da pergunta enviada, em reportagens envolvendo as mortes nas ações —em alguns desses casos, a reportagem também teve acesso às ocorrências.
Sem tempo mínimo para avaliar se os familiares que alegam a inocência de seus entes estavam certos ou não, prevaleceu a versão da polícia, replicada pelo governador Tarcísio de Freitas.
Sem lei na operação da Baixada Santista
Embora diga que casos de morte decorrente de intervenção policial, indisciplina ou de desvios de conduta são "rigorosamente investigados", a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo reafirmou que todas as pessoas mortas na ação da PM na Baixada Santista estavam armadas. Com exceção do caso da mãe de seis filhos baleada em meio a uma operação policial em Santos.
O UOL esteve em seis locais onde houve mortes cometidas pela PM. Com base em consultas feitas com criminalistas e peritos, é possível afirmar que há vestígios de ao menos sete possíveis crimes que podem ter sido cometidos pelos agentes policiais: homicídio qualificado (com recurso que dificultou a defesa da vítima), tortura, fraude processual (por induzir a erro o juiz ou o perito), prevaricação (no caso, por supostamente retardar atendimento médico a pessoas baleadas), omissão de socorro, ameaça e invasão de domicílio.
A reportagem ouviu de testemunhas nesses locais que elas não foram chamadas para contar o que viram. Nesses casos, a Polícia Civil tem obrigação legal de intimar testemunhas para depor.
Nenhum dos registros das mortes cita o uso de câmeras corporais dos agentes. A ausência da produção de imagens nessas ações preocupa as instituições que investigam possíveis ilegalidades na ação.
A reportagem perguntou à Secretaria da Segurança Pública se a operação estava sendo monitorada por câmeras nas fardas dos agentes, já que o equipamento não é citado nas ocorrências. A SSP disse que o Ministério Público tem acesso às imagens das câmeras corporais portáteis, mas não indicou em quantas ou em quais dessas ações o equipamento foi usado.
O uso das câmeras garante transparência e passa a ideia de que os policiais estão atuando na legalidade. Por que as câmeras não estão sendo usadas? A não utilização das câmeras nos leva a desconfiar que há ilegalidades na operação.
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O Ministério Público diz investigar as circunstâncias em que ocorreram as mortes em decorrência de intervenção policial.
As ações se intensificaram desde o começo de fevereiro, como resposta das forças de segurança pública após a morte em Santos de um agente da Rota, tropa de elite da PM.
A operação terminou, mas o luto não. As investigações não podem parar, elas precisam continuar para poder dar luz ao que realmente ocorreu nesses fatos.
Cláudio da Silva, ouvidor das polícias de SP
Guilherme Derrite, secretário da Segurança Pública, deu uma série de declarações em apoio às ações policiais na Baixada Santista, sem questionar eventuais excessos. Após o fim da operação, manteve o mesmo tom.
Nem sabia que eram 56, não faço essa conta. O ideal é que não fosse nenhuma. Mas, no mundo real em que a gente vive, a negligência do combate ao crime organizado chegou num ponto em que qualquer viatura policial vai sofrer disparo de arma de fogo.
'Tô nem aí'
Entre a morte da cabeleireira Edneia e o anúncio do fim da operação Verão, outra vítima de uma ação policial também colocaria em xeque os métodos empregados pela polícia de São Paulo.
Rahoney de Paula Vieira, cabo do Comando de Operações Especiais, morreu no dia 29 de março ao ser baleado por PMs enquanto fazia uma abordagem a um motorista de aplicativo na zona sul de São Paulo.
Como não estava com o uniforme da corporação, despertou a suspeita de policiais militares em patrulhamento dentro de uma viatura, que atiraram antes e descobriram depois que a vítima era um colega de farda. Uma coincidência trágica liga Rahoney à Operação Verão. Ele foi um dos PMs que participou da ação que matou Leonel e Jefferson.
Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, foi denunciado no dia 8 deste mês ao Conselho de Direitos Humanos da ONU por violação de direitos básicos pela alta letalidade policial na Baixada Santista.
Questionado, disse que a ação mais letal de São Paulo desde o massacre do Carandiru, que vitimou um jovem com deficiência visual, um homem de muletas e uma mãe de seis filhos, estava sendo feita com profissionalismo. "E aí o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não tô nem aí".
No dia 21 de fevereiro, o governador já havia dado sinais de que a política em segurança pública deve caminhar nesse sentido. Uma dança das cadeiras na cúpula da PM deu poderes a coronéis mais "linha dura", alinhados a Derrite e com passagens pela Rota, afastando oficiais favoráveis ao uso das câmeras corporais.